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Políticas Públicas

Pressão pela alfabetização

Prova nacional para crianças do primeiro ciclo do ensino fundamental preocupa especialistas; eles temem que uma ênfase na medição possa mecanizar o processo e levar ao ranqueamento das escolas

Publicado em 06/09/2013

por Rodnei Corsini





Focar excessivamente o teste e prejudicar o processo de aprendizagem. Essa pode ser uma das consequências de avaliações de alfabetização aplicadas em larga escala e uma das preocupações entre especialistas em relação à Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), prova do governo federal a ser aplicada, a partir deste ano, para os alunos do 3o ano do ensino fundamental da rede pública. A ANA será feita anualmente, perto do fim do período letivo, de modo censitário.


As preocupações entre especialistas são muitas. O professor da Faculdade de Educação da Unicamp, Luiz Carlos de Freitas, teme que a ANA contribua para a pressão contra escolas, professores e alunos. “Vai aumentar a prescrição de materiais apostilados, desqualificando-se cada vez mais os profissionais que, em vez de exercitarem a reflexão sobre a sua prática pedagógica, serão instados a seguir receitas”, acredita. Para ele, avaliações de larga escala não necessitam ser censitárias e nem anuais. “O que tem influenciado a existência de avaliações censitárias é a ideia de responsabilizar o professor e a escola individualmente. Essa ‘auditoria’ permanente é que exige esse modelo”, afirma.
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Choro e cobrança
João Luiz Horta Neto, pesquisador do Inep e doutor em política social, admite que dependendo da forma como se implementam os testes para avaliação, os professores podem se sentir pressionados a dar um foco excessivo no trabalho para o bom desempenho dos alunos – mas um bom resultado no teste não significa, necessariamente, que o processo educacional esteja acontecendo como deveria.


Ele descreve o cenário que presenciou quando acompanhou a aplicação de testes do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – Provinha Brasil e Prova Brasil – em vários anos escolares. Segundo ele, nos anos iniciais as crianças chegam a chorar quando não conseguem resolver todas as questões no tempo estipulado. “Você percebe que o ambiente fica tenso e a criança se cobra muito – e não sabemos se no momento anterior houve pressão da escola, da família e do professor”, relata.


A pesquisadora da coordenação geral de estudos educacionais da Fundação Joaquim Nabuco, Patrícia Simões, teme que esse tipo de avaliação tenha um efeito de pressão indesejada também sobre o currículo escolar. Em busca de obter bons resultados, os professores podem ser induzidos a montar aulas de “treinamento” para a prova. “E isso traz muitos danos para o processo de aquisição da linguagem escrita do aluno”, diz Patrícia.


ANA x Provinha Brasil
Por outro lado, para medir a alfabetização – e mesmo que não houvesse uma meta definida de “idade certa” para esse processo -, não há como escapar das séries iniciais do ensino fundamental. A ANA está aliada ao Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), que tem como meta a alfabetização das crianças até os 8 anos de idade, ao final do 3º ano do EF. Ana Paula Ribeiro, professora adjunta do Departamento de Teoria e Prática do Ensino da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora adjunta do Pnaic no Estado, defende que quanto mais cedo, melhor.


Matriz desconhecida
“Os modelos de avaliação da Educação Básica que existem hoje realizam avaliações ao final do 5º ano. Os problemas detectados nessa avaliação dificilmente são sanáveis àquela altura. Quanto mais cedo os alunos forem avaliados, maiores serão as chances de terem garantidos os seus direitos de aprendizagem”, diz Ana Paula, referindo-se à Prova Brasil aplicada no 5o ano.


Com a ANA, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) passa a ser composto pela Avaliação Nacional de Rendimento Escolar (Anresc ou Prova Brasil), pela Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb) e pela ANA. A nova avaliação foi decretada em junho, em duas portarias (do Ministério da Educação e do Inep) publicadas no Diário Oficial da União. A avaliação vai testar conhecimentos em leitura, escrita e matemática e será aplicada de maneira censitária para as turmas regulares e de forma amostral para turmas multisseriadas. A matriz de referência da ANA, segundo o Inep, será disponibilizada em breve, mas o Instituto informou que não há data definida para isso.


Para avaliar a alfabetização nos primeiros anos do ensino fundamental, o Saeb já contava com a Provinha Brasil, uma avaliação diagnóstica aplicada em duas etapas (no início e no fim do ano letivo) para os alunos do 2o ano. Segundo o Inep, a prova não sofrerá alterações. De acordo com o órgão, a ANA foi criada para “avaliar a qualidade, a equidade e a eficiência” do ciclo de alfabetização das redes públicas. Já a Provinha Brasil é um instrumento disponibilizado para o professor, com caráter diagnóstico de sua turma.


Integrada ao Saeb e aplicada desde 2008 para os alunos do 2o ano, a Provinha Brasil parece dividir opiniões. Para o professor Luiz Carlos de Freitas, da Unicamp, a avaliação foi eficiente em evitar o ranqueamento e a pressão sobre o docente. “A prova vai direto ao pedagógico, ao diagnóstico, provendo o professor de informações sobre seus estudantes”, diz. Já a pesquisadora da coordenação geral de estudos educacionais da Fundação Joaquim Nabuco, Patrícia Simões, acredita que, para o professor, a avaliação externa nem sempre é considerada melhor do que aquela desenvolvida no processo de ensino. “Os professores não utilizam os resultados das avaliações para repensar suas práticas pedagógicas. As provas são aplicadas como uma atividade obrigatória que deve ser cumprida por ser uma demanda do MEC, ou das secretarias estaduais ou municipais de educação”, avalia Patrícia.


O que avaliar
Um dos maiores desafios no caso da avaliação nessa etapa é como medir o processo de alfabetização. Como os alunos aprendem em ritmos diferentes corre-se o risco de fazer a medição na prova em um momento em que o processo do aprendizado não está concluído. “A avaliação já é feita com a Provinha Brasil em dois momentos do 2o ano e, agora, com a ANA no 3o ano de escolaridade. Com isso, que tipo de mensagem é passada para a escola? ‘Professores, vocês têm de se preparar para o teste porque é ele que vai dizer se a criança está alfabetizada ou não'”, diz João Luiz Horta Neto, do Inep.


Outra questão a ser considerada é qual será o conceito norteador da avaliação das habilidades de leitura e escrita. “Diferentes definições levam a diferentes indicadores, diferentes matrizes e diferentes itens nos instrumentos de avaliação”, diz Patrícia Simões. Alguns testes avaliam competências associadas a elementos importantes da alfabetização, como habilidades consideradas periféricas à leitura.


A falta de informação sobre as matrizes de referência da ANA gera incertezas sobre qual conceito prevalecerá. Patrícia lembra que em documentos do MEC, como os Parâmetros Curriculares Nacionais e os cadernos de orientação dos avaliadores da Provinha Brasil, são utilizados os termos “alfabetização” e “letramento”. “Mas, ao se analisar o instrumento da Provinha Brasil observa-se uma ênfase na avaliação de habilidades de domínio do código escrito”, diz Patrícia. “Como consequência, a proposta de classificação dos níveis de desenvolvimento da linguagem escrita apresentada para a Provinha Brasil parece confusa. Priorizam a avaliação das habilidades de decodificação e identificação de letras, sílabas e palavras em detrimento do conhecimento de gêneros textuais e funções da linguagem escrita”, completa.


Como usar os resultados
Para Gisele Carvalho, pedagoga e mestra em educação na área de Avaliação e Políticas Públicas pela Universidade Federal de São João del-Rei (MG), o potencial de informação que avaliações em larga escala produzem é muito importante para auxiliar governos, escolas e professores a planejarem suas ações. “Tais informações permitem identificar necessidades de aprendizagem e de investimentos diversos. Os efeitos desse tipo de avaliação são múltiplos, embora dependam não só dos usos pedagógicos, mas também dos usos políticos dos resultados e informações coletados”, diz. “Cabe às escolas aplicá-la, corrigi-la e utilizar pedagogicamente os resultados – este último, julgo ainda, é um desafio”, completa.


Segundo Ana Paula Ribeiro, o modelo de avaliações em larga escala com aplicações censitárias leva os resultados a ser socializados mais rapidamente e de forma mais inteligível aos professores e gestores. “Assim, a comunicação é mais efetiva e o uso dos resultados é orientado para a dimensão pedagógica, o que é um importante diferencial em relação aos modelos amostrais”, afirma.


Os primeiros instrumentos de avaliação da alfabetização no Brasil são do final dos anos 1980, lembra João Luiz Horta Neto, pesquisador do Inep. As primeiras aplicações de pesquisas no âmbito nacional, desenvolvidas pela Fundação Carlos Chagas, foram em 1988. Segundo Horta, a preocupação naquela época era identificar se estava acontecendo algum problema na alfabetização e, caso estivesse ocorrendo, verificar como o sistema educacional   poderia atuar junto à formação de professores – tanto na inicial quanto na continuada. “As avaliações não tinham por objetivo classificar escola ou premiar professor, e também não se comentava que havia uma idade certa para a criança estar alfabetizada. Hoje a ênfase é totalmente diferente”, diz.


Para Sandra Zákia Sousa, professora da Faculdade de Educação da USP, a iniciativa de criar a ANA faz parte da crença de que provas externas e em larga escala têm potencial de ser um meio indutor de qualidade do ensino e da aprendizagem. “Além de não ser possível fazer essa associação direta – haja vista os persistentes dados de fracasso escolar, apesar da instituição do Saeb há mais de duas décadas – vale comentar possíveis desserviços desta iniciativa nos anos iniciais da escolarização”, afirma. Sandra tem divulgado em seus trabalhos que a concepção de avaliação cujo foco seja o desempenho em testes desloca a discussão, indesejadamente, da qualidade do ensino do âmbito político e público para o âmbito técnico e individual. “Isso tende a ativar mecanismos que estimulam a competição entre escolas e redes de ensino”, aponta.








Logística da prova preocupa


De acordo com informação publicada no Diário Oficial da União, a Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) será realizada entre os dias 11 e 21 de novembro deste ano. O Inep, entretanto, não divulgou os valores de custo da avaliação e, segundo o Instituto, ainda estão sendo definidos os requisitos para a contratação da empresa que vai aplicar a prova. Segundo informação do blog Educação e Pesquisa, escrito por Beatriz Rey no site da revista Educação, alguns técnicos do Inep apontaram a necessidade de dedicar mais tempo para a elaboração das matrizes de referência da ANA, além da preparação dos itens e questionários socioeconômicos e da etapa de pré-teste. Também alertaram sobre possíveis dificuldades logísticas, sobretudo para que as empresas que forem contratadas encaminhem em tempo o material para a análise do Instituto.









Avaliações estaduais


Além dos testes em nível nacional para a alfabetização – Provinha Brasil e, agora, a ANA -, alguns estados aplicam suas próprias avaliações na rede pública. Ana Paula Ribeiro, professora adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC), cita como exemplo os Estados do Piauí e da Bahia, além do próprio Ceará, considerado o “berço” do programa federal de alfabetização na idade certa. Em 2008, o Piauí criou o Programa Palavra de Criança – baseado nos resultados da Provinha Brasil – para ter seu próprio modelo de uso dos resultados da avaliação. Em 2011, a Bahia firmou o Pacto Todos pela Escola que, entre outras ações, avalia os alunos do 2º ano do ensino fundamental com a Provinha Brasil – aplicando e consolidando os dados com uma equipe externa à escola. Minas Gerais foi pioneira, no âmbito estadual, ao utilizar avaliações para a alfabetização, já no final dos anos 1980. Hoje, conta com o Proalfa – um programa similar à ANA em relação ao formato e periodicidade da prova: anual, censitária, aplicada para os alunos do 3o ano. E São Paulo, que também conta com seu próprio mecanismo de avaliação da alfabetização – o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) – abaixou no último mês de julho sua meta de “idade certa” para alfabetização de 8 para 7 anos. Com isso, os estudantes da rede pública paulista do 2o ano também serão submetidos pela primeira vez à avaliação do Saresp no final deste ano letivo. A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo não informou qual será o critério para considerar os alunos de 7 anos alfabetizados.

Autor

Rodnei Corsini


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