NOTÍCIA

Edição 219

Rumo ao abismo

É preciso dar relevância ao caráter comunitário da experiência escolar

Em reflexão sobre os rumos das greves de professores deste ano, o sociólogo José de Souza Martins aponta um elemento desagregador que tem recebido pouca atenção das políticas públicas de educação: “A transformação do professor em caixeiro-viajante do ensino para o ganho do que carece para viver como professor – e não ser reduzido a proletário da educação – nega o essencial do magistério. A missão civilizadora da educação só é possível na concepção da escola como uma comunidade de ensino e aprendizado que une em torno de uma causa comum professores, alunos, pais de alunos e a própria sociedade abrangente. A escola do docente enraizado, não a do docente itinerante”.

A evidência e a força de seu argumento saltam aos olhos se compararmos o abismo entre a qualidade da educação pública nos primeiros anos do ensino fundamental – nos quais o docente se enraíza pela sua presença cotidiana e pelos vínculos dela decorrentes – e em suas séries terminais, marcadas pela presença de professores que se veem obrigados a trabalhar em duas, três ou até quatro escolas; que mal chegam a conhecer seus alunos ou a travar contato com seus pais. Não é à toa que neste último segmento as faltas são mais frequentes, os casos de agressão e desrespeito mais agudos, a desmotivação mais intensa.

Pensar a escola como “uma comunidade de ensino e aprendizado” implica que, mais do que uma reunião de indivíduos que perseguem interesses próprios, a instituição escolar deve congregar professores e alunos em torno de um ideal comum: o da formação de sujeitos que, embora singulares, participam de uma tradição cultural compartilhada. Trata-se de um ideal cujo alcance prevê o ensino e a aprendizagem de conhecimentos, práticas e saberes, mas o transcende. Isso porque o caráter educativo desse aprendizado não reside apenas nos benefícios individuais de quem os recebe; naquilo que ele permite fazer ou produzir. A formação – diferentemente da mera aprendizagem – implica a articulação entre saberes comuns, experiências individuais e um núcleo básico de princípios e valores capazes de orientar um modo de vida compartilhado.

A possibilidade de criação e manutenção de uma comunidade nesses termos requer, portanto, duas condições prévias. A primeira é a de que a escola se afaste de um modelo fabril e burocratizado no qual seus agentes – professores, alunos e demais profissionais da educação – sejam alijados da responsabilidade das decisões que dizem respeito a seu “viver-juntos”. A segunda diz respeito à criação de uma estrutura física e profissional que permita àqueles que nela trabalham fazer de seu ofício um modo de vida e não apenas um meio (precário) de subsistência. Submetida à lógica da produtividade máxima com investimento mínimo, a escola jamais logrará se tornar uma comunidade, mesmo que venha a ser uma competente agência de fomento econômico ou de conformação social.

É isso que os teóricos do capital humano jamais foram capazes de compreender. Pensar e gerir a escola como se fosse uma unidade produtora de objetos com valor de mercado é tão inadequado como pensar e gerir uma indústria automobilística como se fosse uma comunidade voltada ao intercâmbio entre gerações diferentes que habitam um mundo comum. Nos dois casos, estaríamos caminhando rumo ao abismo.

Autor

José Sérgio Fonseca de Carvalho


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