NOTÍCIA

Formação

Sala de aula sem professor?

Instituições precisam repensar suas práticas, mas não serem extintas ou desfiguradas com a exclusão de seus elementos centrais

Publicado em 15/03/2017

por Marina Kuzuyabu

Destaque

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O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, morto em janeiro deste ano, afirmou em um de seus escritos que o papel das universidades era formar mísseis inteligentes, ou seja, pessoas capazes de mudar de ideia, rever decisões, tomar decisões – habilidades ausentes nos mísseis teleguiados.

A citação é lembrada pelo pró-reitor acadêmico do Centro Universitário Belas Artes, Sidney Ferreira Leite, ao ser indagado sobre o papel do ensino superior. A reportagem conversou com ele e com outros educadores em busca de uma resposta para essa difícil questão, que ronda a cabeça de gestores e professores. É uma indagação que resulta das pressões que hoje incidem sobre as instituições de ensino. Quando se fala que o país precisa de mais empreendedores, que falta inovação nas empresas, que os avanços tecnológicos são tímidos, que faltam pesquisas de ponta, que a produtividade dos profissionais é baixa, todos se voltam para as universidades. São elas que deveriam solucionar esses problemas, na visão da maioria das pessoas.

Outra questão importante – e, de certa forma relacionada com a do papel do ensino superior – diz respeito às mudanças que precisam ser feitas para melhorar a formação dos jovens. Uma vez entendido que os estudantes não estão suficientemente engajados no processo de ensino e aprendizagem e que a dinâmica das aulas está ultrapassada e descolada da realidade, surge a dúvida: como mudar? Para qual direção caminhar?

Desconstrução ou inovação?
Em 2013, um bilionário francês das telecomunicações fundou uma instituição de ensino superior totalmente diferente: a Universidade 42. Sediada em Paris, a escola é voltada para a formação de programadores e desenvolvedores de software, basicamente. O que chamou a atenção do mundo foi o seu modelo sem livros e sem professores. Os estudantes aprendem entre si – a partir da metodologia peer to peer instruction – e com informações que buscam na internet. A sala de aula é uma ampla área preenchida com longas mesas e dezenas de computadores. Os alunos fazem as atividades quando querem: a escola fica aberta 24 horas por dia, ininterruptamente. Em linhas gerais, eles trabalham por projetos; há uma sequência de atividades obrigatórias e outra opcional, elegível conforme os interesses de cada um. Como o ritmo da realização dos projetos é ditado pelo próprio aluno, o tempo de conclusão do curso varia de dois a cinco anos.

Recentemente, a instituição abriu uma unidade nos Estados Unidos, especificamente no Vale do Silício. Assim como na França, não há cobrança de mensalidades. Os alunos são selecionados a partir de um teste de lógica e de um desafio. Xavier Niel, seu fundador, declarou em entrevistas que seu objetivo era identificar programadores talentosos, independentemente de qualquer outra habilidade. Assim, pouco importa o nível de proficiência em linguagens ou matemática ou a bagagem cultural dos jovens candidatos, que devem ter entre 18 e 30 anos.

A instituição é financiada pelo empresário. Suas motivações são retribuir à sociedade uma parte da riqueza que amealhou no mundo dos negócios e melhorar a formação dos profissionais que atuam no setor de TI. Em sua avaliação, as universidades públicas não conseguem formar os profissionais que o mercado deseja e as particulares, embora estejam mais conectadas com a realidade, são inacessíveis para grande parte da população.

Se a extinção de livros e professores parece radical demais, imagine a eliminação completa da universidade. Essa é a proposta do americano Dale Stephens, de 25 anos, que fundou o movimento Uncollege, presente no Brasil, inclusive. Nas palestras que apresenta ao redor do mundo, Stephens diz que o ensino superior não deve ser a única trilha de aprendizado para aqueles que desejam acessar o mercado profissional. O conhecimento, as habilidades e as competências podem ser adquiridos em meios informais, e complementados com estágios e intercâmbios. Para alguns, o programa proposto – que dura um ano – pode servir de preâmbulo para o curso superior. Mas, para outros, a experiência pode se encerrar ali mesmo.

O surgimento desses e outros modelos alternativos se deve ao fato de que a estrutura convencional ruiu, acredita Ismael Rocha, diretor de extensão acadêmica da graduação da ESPM. “Os jovens não aguentam mais aquele modelo de ensino organizado por disciplinas, com currículo fechado, as avaliações de sempre, o professor falando por uma hora e meia com a ajuda de um power point… Essa estrutura explodiu”, analisa.

Citando outro exemplo inovador, ele fala do caso da Tiimiakatemia, uma instituição de ensino superior que conheceu na Finlândia. “Não tem estudantes, não tem classe, não tem professor, não tem controle. Eles trabalham por projetos em uma estrutura muito parecida com a da 42”, relata. Além de cumprir os projetos, que são realizados em grupos, os alunos também têm de atingir uma determinada pontuação de leitura. No último ano – são quatro, no total –, os alunos partem para o exterior para realizar estágios.

Repensar o modelo
O ato de repensar a escola não é exatamente uma novidade. O século 20 é marcado por diversas experiências nesse campo, como a Escola da Ponte, em Portugal, Summerhill, na Inglaterra, e os Ginásios Vocacionais, no Brasil. A diferença é que hoje há uma rede poderosa de informações que faz com que esses modelos alternativos seduzam de forma mais efetiva os jovens, acredita Rocha.

Assim como seus colegas, ele reconhece que a universidade precisa mudar, de fato. Mas não concorda que ela deva ser extinta, como propõe Dale Stephens, ou se transformar radicalmente a ponto de excluir alguns de seus elementos centrais, como o professor.

Para Sidney Ferreira Leite, o modelo da Universidade 42 pode até funcionar em outros contextos, mas dificilmente daria certo no Brasil em função dos déficits de aprendizado apresentados pelos egressos de ensino médio. A falta de autonomia dos universitários seria outro entrave. Os alunos que entram nas universidades, conta, são muito dependentes das referências do professor, dos registros em sala de aula, dos apontamentos. “Eles cobram, pedem aula e fazem tudo isso porque precisam. Seria uma atitude precipitada abrir mão desse mediador entre o conhecimento consolidado e o conhecimento em formação. O professor continua sendo uma figura indispensável”, declara.

“Universidade sem professores e livros é como um jogo de futebol sem bola e sem gols”, sentencia Walter Omar Kohan, professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Para ele, os alunos podem aprender todas as habilidades do mundo, mas isso não é o mais importante. “A universidade é um espaço para se pensar juntos a sociedade que se habita e como torná-la mais justa a partir do que se tenha escolhido como curso. Isso só é possível se há um professor que coordena o processo coletivo e individual. Quanto aos livros, ainda não inventamos uma tecnologia mais bonita para se formar”, completa

Dificilmente os alunos também poderiam adquirir uma formação humanística sólida sem a presença de um docente, acredita Rocha, que lembra que mesmo na Universidade 42 e na instituição finlandesa há, ao menos, tutores. “O professor continua sendo fundamental, porque ele tem um olhar mais crítico e, quando consegue dialogar com os alunos, ele se torna referência. Mas ele precisa se reciclar, precisa entender que não existe mais ‘eu ensino e você aprende’. Existe ensino e aprendizagem”, pondera.

Feitas essas ressalvas, os especialistas acreditam que a utilização de metodologias ativas em sala de aula – como o peer to peer instruction – e a abertura das instituições para as situações informais de aprendizagem são elementos que podem sim ser incorporados.

Os espaços informais de aprendizagem aliás, adquiriram na sociedade contemporânea um lugar significativo no processo de formação e consolidação de habilidades e competências. Eles são muito eficazes, principalmente para adquirir conhecimento prático, concreto e aplicável. No entanto, esse conhecimento precisa se conectar com os saberes que circulam nos espaços formais de aprendizagem, acredita o pró-reitor do Belas Artes: “A formação de um estudante é mais sólida quando existe uma dialética entre a universidade e a vida prática. Um fica mais forte quando está numa situação de diálogo com o outro”.

Uma forma de viabilizar isso é desafiar os alunos a resolver problemas reais, que podem inclusive ser apresentados por empresas parceiras, como exemplifica James Wright, diretor da Faculdade da Fundação Instituto de Administração (FIA). Para ele, as IES têm de interagir mais com a sociedade, uma vez que 30% do conhecimento que os estudantes precisam adquirir vem dessa interação. O que impede que isso aconteça com mais frequência é a forte tradição academicista das universidades brasileiras, analisa. “Existe uma ideia de que a interação da universidade com a economia, com o mundo dos negócios, é algo pernicioso.”

Wright, que também é coordenador do Profuturo, na FIA, ainda critica a valorização dos contratos de dedicação exclusiva para os docentes. “A crença de que o ideal é o professor de tempo integral, que não tenha nenhuma interação com a prática, com o ambiente econômico, com o ambiente de negócios, com o ambiente de saúde, é uma ideia absurda”, aponta.

O lugar da prática
A importância de estreitar o relacionamento com a sociedade é fundamental para atingir a tão desejada melhoria na formação dos jovens. Desse avanço depende a evolução de uma série de indicadores, como os econômicos. O Brasil precisa dobrar a produtividade média de seus profissionais em 30 anos para alcançar o nível de renda per capita de Portugal ou Grécia, menciona Wright. E isso só será possível com trabalhadores mais qualificados, mais bem treinados.

Ter isso em mente, contudo, não implica direcionar todos os esforços para o mercado. É nesse ponto que a discussão volta para a pergunta sobre o sentido do ensino superior. “Um papel importante, não só da universidade, mas de todo o sistema educacional, é formar cidadãos conscientes, capazes de opinar sobre os rumos do país de maneira estruturada, bem pensada e calcada em valores sólidos”, resume o diretor da FIA.

Seria até inviável assumir como missão a formação exclusiva de profissionais, opina Leite, do Belas Artes. Com a velocidade das transformações sociais e com a profusão de informações em circulação, dificilmente as instituições dariam conta de acompanhar esse fluxo e colocar no mercado um profissional já pronto. Além disso, o diploma não tem mais o mesmo poder de antigamente, quando sua conquista vinha invariavelmente acompanhada por bons empregos e conquistas pessoais. “Os desafios se tornaram mais agudos na sociedade contemporânea”, analisa.

Nesse contexto, cabe às instituições promover uma espécie de abertura mental na vida dos estudantes, para que eles, “uma vez iniciados na vida profissional, apresentem diferenciais como seres humanos, diferenciais competitivos, habilidades e competências que ampliem o horizonte de entendimento não só da atividade profissional, mas do lugar no mundo desses seres humanos”, explica Leite.

Outra função é desenvolver pesquisas de ponta em todos os campos. “As grandes rupturas de paradigmas na ciência, nas ciências exatas, nas ciências humanas nasceram nos laboratórios das universidades”, enfatiza. Àqueles que vão discordar lembrando dos casos de Bill Gates e Steve Jobs, que não concluíram os estudos de nível superior, o pró-reitor do Belas Artes enfatiza que eles, e tantas outras personalidades de biografia semelhante, sempre estiveram cercados por egressos de cursos superiores.

Já para o diretor de extensão acadêmica da graduação da ESPM, o importante é formar pessoas críticas, cidadãos capazes de entender o mundo à sua volta. Em outras palavras, não basta apenas a formação técnica, como a que a Universidade 42 oferece. “Eu preciso entender o que o mercado demanda, mas preciso olhar a sociedade como um todo. A universidade não pode ter um sentido utilitarista, ela tem de ter um sentido reflexivo”, analisa. E esse princípio vale para instituições de todo porte e para todos os perfis de alunos.

Sem essa perspectiva, dificilmente o país será berço de serviços inovadores, opina. “Se perdermos de vista a formação de cidadãos, seremos um país de terceiro mundo para sempre. O único jeito de rompermos essa barreira é trabalharmos o pensar livre, o pensar descomprometido.” É dessa capacidade de pensar livremente, de forma disruptiva, que depende o surgimento dos próximos Airbnb e Uber, para citar alguns exemplos. As pessoas que criaram esses serviços certamente não estavam pensando em como se adaptar ao mercado, diz Rocha.

São diversas as funções do ensino superior, concorda Walter Omar Kohan, da UERJ. Mas a principal delas em sua visão é consolidar a formação dos jovens para construir uma sociedade mais justa.

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Portanto, a despeito de todas as mudanças que se queiram fazer, o ensino superior continuará existindo e exercendo papel de grande relevância. A agenda do século 21 – pautada pela busca de uma sociedade mais equânime, pela busca de mecanismos que garantam ao homem mais qualidade de vida, por exemplo – não será cumprida sem a atuação de protagonismo das universidades, acredita Leite. “O século 21 também será o século das universidades, do ensino superior”, finaliza.

Autor

Marina Kuzuyabu


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