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Sobre a interpretação

Interpretar significa construir uma narrativa própria

Publicado em 29/03/2012

por Rubem Alves






“Hoje vamos interpretar um poema”, disse a professora de literatura. “Trata-se de um poema mínimo da poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andressen”, ela continuou. “O seu título é ‘Intacta Memória'”. E com essas palavras começou a leitura.”Intacta memória – se eu chamasse/Uma por uma as coisas que adorei/Talvez que a minha vida regressasse/Vencida pelo amor com que a sonhei”. Ela tira os olhos do livro e fala: “O que é que a autora queria dizer ao escrever esse poema?”.


Essa pergunta é muito importante. Ela é o início do processo de interpretação. Na vida estamos envolvidos o tempo todo em interpretar. A interpretação é aquilo que se deve fazer com os textos que se lê. Para que sejam compreendidos. É claro que a interpretação só se aplica a textos obscuros. Não se interpretam textos claros. “O que é que o autor queria dizer?” Note: o autor queria dizer algo. Queria dizer mas não disse. Por que será que ele não disse o que queria dizer? Só existe uma resposta: “por incompetência linguística”. Ele queria dizer algo, mas o que saiu foi apenas um gaguejo, uma coisa que ele não queria dizer.


A interpretação, assim, se revela necessária para salvar o texto da incompetência linguística do autor… Claro que tudo o que eu disse é uma brincadeira. É preciso compreender que o escritor nunca quer dizer alguma coisa. Ele simplesmente diz. O que está escrito é o que ele queria dizer. Se me perguntam: “O que é que você queria dizer?”, eu respondo: “eu queria dizer o que disse. Se eu quisesse dizer outra coisa eu teria dito outra coisa e não aquilo que eu disse”. Estremeço quando me ameaçam com interpretações de textos meus. Escrevi uma estória com o título ” O gambá que não sabia sorrir”. É a estória de um gambazinho chamado “Cheiroso” que ficava pendurado pelo rabo no galho de uma árvore. Uma escola me convidou para assistir à interpretação do texto que seria feita pelas crianças. Fiquei feliz. Iniciada a interpretação eu fiquei pasmo! A interpretação começava com o gambá. O que é que o Rubem Alves queria dizer com o gambá? Foram ao dicionário e lá encontraram: “gambá: nome de animais marsupiais do gênero Didelphys, de hábitos noturnos que vivem em árvores e são fedorentos. São omnívoros, tendo predileção por ovos e galinhas”. Seguiam descrições científicas de todos os bichos que apareciam na estória. Fiquei a pensar: “o que é que fizeram com o meu gambá? Meu gambazinho não é um marsupial fedorento”. Octávio Paz diz que a resposta a um texto nunca deve ser uma interpretação. Deve ser um outro texto. Quando um professor lê um poema para os seus alunos, deve fazer-lhes uma provocação: “o que é que esse poema lhes sugere? O que é que vocês veem? Que imagens? Que associações?”. Assim o aluno, ao invés de se entregar à duvidosa tarefa de descobrir o que o autor queria dizer, entrega-se à criativa tarefa de produzir o seu próprio texto literário.  Mas há um tipo de interpretação que eu amo. É aquela que se inspira na interpretação musical. O pianista interpreta uma peça. Isso não quer dizer que ele esteja tentando dizer o que o compositor queria dizer. Ao contrário, possuído pela partitura, ele a torna viva, transforma-a em objeto musical,  tal como ele a vive na sua possessão. Os poemas, assim, podem ser interpretados, transformados em gestos, em dança, em teatro, em pintura. O meu amigo Laerte Asnis transformou a minha estória “A pipa e a flor” num maravilhoso espetáculo teatral. Pela arte do intérprete, o Laerte, palhaço, o texto que estava preso no livro fica livre, ganha vida, movimento, música, humor. E com isso a estória se apossa daqueles que assistem ao espetáculo. E o extraordinário é que todos entendem, crianças e adultos.


Rubem Alves
Educador e escritor
rubem_alves@uol.com.br

Autor

Rubem Alves


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