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Sobre cisternas e fontes

Água parada é um veneno, já dizia o poeta

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Alves

William Blake foi um poeta inglês em que aconteciam aforismos. Aforismos são como relâmpagos. Acontecem. Iluminam vindos não se sabe de onde. Com poder de rachar rochas. 

Hoje um dos seus relâmpagos aconteceu: "As cisternas contêm; as fontes transbordam." Cisternas são buracos que se fazem na terra para guardar a água da chuva. São muito úteis em regiões áridas. A água que a cisterna contém não brota dela. Já as fontes são símbolos de vida. Parodiando o Riobaldo, digo: "Onde as fontes borbulham tudo é alegria".

Para se ter uma fonte não é preciso cavar. A própria água cava seu buraco. A terra não contém sua pressão para sair. É uma erupção vulcânica, a terra ejaculando vida.

 Outro aforismo de Blake nos dá a chave para decifrar o sentido deste: "O homem que nunca altera suas opiniões é como água parada: gera répteis na sua mente". Cisterna é um lugar de água parada que pode gerar répteis. A fonte é um lugar de águas sempre novas que transbordam.

São metáforas de dois tipos de pessoas. E de educação. Há pessoas que são cisternas e há pessoas que são fontes. Há uma educação-cisterna e uma educação-fonte. A educação-cisterna quer encher o buraco chamado aluno com uma água que não brota dele. A educação-fonte não quer colocar água dentro do aluno. Quer fazer brotar a fonte escondida dentro dele.

Lembrei-me do Pequeno Príncipe: "O deserto é belo porque em algum lugar esconde uma fonte". Uma criança é bela porque dentro dela há uma fonte escondida.

 A capacidade do aluno-cisterna de reter água tem o nome de "memória".  Há dois tipos de memória: com poros e sem poros. Diz-se de uma pessoa que retém tudo o que foi posto dentro dela: "Tem boa memória…". A esse tipo de memória faltam os poros do "esquecimento". Incapaz de esquecer, retém tanto a água venenosa dos répteis quanto a água cristalina das fontes.

Essas memórias sem poros que jamais esquecem são raríssimas. Aparecem apenas em casos patológicos, os débeis mentais chamados sábios idiotas. Decoram um livro com uma só leitura, mas nada entendem.

Mas a educação-cisterna tem como ideal a memória sem poros, que não esquece. Seus métodos de avaliação se restringem a medir a água retida. Se brotou água, se dentro da cisterna há uma mina, não interessa. Sua avaliação se restringe a perguntar: "Da água despejada dentro do aluno, sobrou quanto? Aluno bom é cisterna boa: guarda a água que o professor despejou. Aluno ruim deixa essa água escorrer pelos poros do esquecimento. 

Desses pressupostos deduz-se o que é "aprendizagem". O aprendido é a água retida. Assim, o aprendido pelo aluno é sempre igual ou menor ao sabido pelo professor. Provas têm por objetivo medir a água que ficou. Preparar-se para uma prova é repor a água que o esquecimento filtrou. Por isso, seus resultados são sempre falsos. Medir o tanto de água que restou numa cisterna logo depois de ela ter sido preenchida só produz resultados mentirosos. Ninguém faz cursinho hoje para fazer o vestibular daqui a dois anos. Dois anos depois o supostamente aprendido terá se escoado pelos poros do esquecimento.

A memória esquece por ser sábia. A palavra sábio, em latim, quer dizer "eu degusto". Degustar é discriminar entre o gostoso e o que não é gostoso. O gostoso o corpo come e incorpora. O que não é gostoso o corpo rejeita. A memória se livra do que foi reprovado pelo teste de degustação por meio do esquecimento. É preciso esquecer o que foi reprovado pelo teste da degustação para não adoecer.

William Blake advertiu: "Espere veneno de água parada…". Muitos que têm memória sem furos são perfeitos idiotas. Na educação-fonte, o educador cuida das fontes. A água não jorra nem nos mesmos lugares e nem com a mesma força. Mas jorra. Por vezes algum detrito entope o jorro. O educador vai lá e limpa a sujeira para que o jorro continue.



Rubem Alves – Educador e escritor –



rubem_alves@uol.com.br

Autor

Rubem Alves


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