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Autores recuperam antigos jogos e brincadeiras em obras dedicadas ao resgate de hábitos culturais

Publicado em 10/09/2011

por Valéria Hartt

Seja por pura nostalgia ou pelo compromisso de resgatar a cultura de uma época, ensinar para a atual geração de crianças as brincadeiras "de antigamente" é sempre uma experiência valiosa. Difícil, para os adultos, é se entregar ao brincar, de corpo e alma, e vencer a visão comum de que os brinquedos e brincadeiras que mobilizaram sua infância, assim como a de seus pais, tios e avós, não servem mais para as crianças de hoje.

"As crianças não estão brincando com aqueles brinquedos porque, simplesmente, não os conhecem", resume o poeta e arte-educador Francisco Marques, o Chico dos Bonecos, para quem o olhar infantil não vê contradição alguma entre as modernas tecnologias e os brinquedos  milenares. "As crianças terão prazer em dividir  seu tempo entre os videogames e os corrupios", garante.

Basta um mergulho nas lembranças da infância para que qualquer adulto que se preze dispare de pronto duas ou três brincadeiras e brinquedos que marcaram seus tempos de criança. É exatamente esse universo, carregado de experiência emocional, que pode servir de matéria-prima aos que se dispõem a ampliar o repertório de brinquedos e brincadeiras de uma geração de crianças restrita à TV e aos jogos eletrônicos. Nada mais apropriado que o período de férias para realizar a empreitada.

Como ensina o Chico dos Bonecos, nenhuma criança quer aprender a fazer 10 brinquedos diferentes. Basta um, mas que seja verdadeiramente significativo para aquele adulto que está ensinando.

"(…) a gente só constrói o brinquedo que já existe dentro da gente, numa névoa de memória e imaginação – e todo o nosso esforço criativo consiste nessa mistura de ‘reconhecimento’ e ‘apropriação’", escreve em Sáiti Gudáiti, quarto título do autor lançado pela Peirópolis, o primeiro em formato eletrônico (
www.editorapeiropolis.com.br/autores

chicobonecos/ph1).

Quem procura referências para refrescar a memória também pode recorrer ao recém-lançado Mãe da Rua, crônica bem-humorada da infância dos anos 50 e 60, que marca a estréia do artista gráfico Ettore Bottini na produção autoral.

Em tempos distantes da violência urbana e dos brinquedos tecnológicos, Bottini recupera a memória afetiva da infância, descreve meninos artífices de seus próprios brinquedos e nos apresenta a rua como o grande território das brincadeiras. Podia ser qualquer uma, em um bairro qualquer da São Paulo antiga, e não tinha propriamente delimitação geográfica. "Por ‘rua’ entendia-se um espaço indeterminado e elástico que ia apenas até a esquina para os mais novos e se expandia com a idade da molecada e com a audácia das brincadeiras, chegando a ultrapassar as fronteiras do bairro na época de São João", descreve o autor.


Artífices e heróis

Bottini presta uma homenagem à turma da rua e resgata com ela o espírito da territorialidade do bando. Para defender o espaço das hordas inimigas – os moleques do bairro vizinho -, enfrentavam combates intensos, alguns eternizados pela bravura do grupo. Visionários, foram capazes de transformar o terreno baldio da esquina no maior empreendimento urbanístico da rua, o campinho, ainda que suas dimensões comportassem apenas seis jogadores de cada lado. E saíram de um clássico em tarde de domingo para entrar orgulhosamente para a história com o espírito de verdadeiros heróis, consagrados por infligir a derrota aos grandalhões do time adversário.

O livro é um convite à brincadeira. Desvenda jogos capazes de causar estranheza a muitas crianças urbanas, como a búlica, o bate-lata, a finca ou a brincadeira de sela. Lembra de aventuras com tempo certo no calendário da criançada, como as pipas "que coalhavam o céu com os ventos de agosto" e a época de São João, "quase três meses de bombinhas e balões". E, com a seriedade que o tema merece, ensina em detalhes a construção dos brinquedos que marcaram época.   

Ao lado da atmosfera nostálgica, Mãe da Rua traz também recriações bem contemporâneas de brinquedos antigos. É o caso do estilingue, "em versão humanizada e urbana", feito simplesmente a partir de uma argola de elástico comum, tendo como armamento uma singela bolinha de papel ou um clipe de metal. "A variante é ideal para salas de aula e também conta com grande número de entusiastas", registra.

Que o espírito da brincadeira é o mesmo, ninguém duvida, mas fica claro que a confecção do brinquedo deixa a desejar frente ao capricho dos estilingues daqueles tempos.


Território perdido

Meio século depois, tem-se a impressão de que a turma se dissolveu no confinamento da nova arquitetura urbana, em um novo tecido social. Encolhidas as famílias e inacessíveis as ruas, 70% das crianças entre cinco e sete anos brincam quase sempre sozinhas, revela estudo realizado pela educadora Maria Ângela Carneiro, da PUC-SP.

"Não dá para alimentar ‘utopias regressivas’, como falou o ex-presidente Fernando H. Cardoso outro dia, porque é impossível recuperar o espaço que existia nos anos 60. Hoje, estamos restritos ao privado e é claro que esse espaço social faz falta. Antes, havia muitos campos de futebol nos bairros. Essa qualidade dos espaços públicos é que as crianças perderam e se começa a criar um espaço de interação digital. A turma hoje está na internet", acredita.

Não deixa de ser verdade, mas a turma, hoje, também está na escola. É o que revela o estudo A Descoberta do Brincar, realizado pela Ipsos para a Unilever. A pesquisa investigou o brincar em 77 cidades brasileiras, representando um universo de 31 milhões de pais e 24 milhões de crianças de seis a 12 anos. E concluiu: para 46% dos pais, a escola ainda é o lugar onde as crianças mais brincam fora de casa.

"É um dos poucos espaços que resta para o brincar, mas o senso comum julga que o acadêmico é importante, enquanto o brincar não serve para nada",  diz Maria Ângela, também relatora e consultora da pesquisa da Ipsos.


Eficiência pedagógica

Como um espelho de nossos valores culturais, a escola parece mesmo que se esqueceu de brincar. E não é de hoje. Resgatar a cultura do brincar e da infância não é um desafio recente, nem a proposta do lúdico traz em si qualquer ineditismo.

Em Mundo da Lua, um diário juvenil, Monteiro Lobato é categórico ao afirmar que "a inteligência só entra a funcionar com prazer, eficientemente, quando a imaginação lhe serve de guia". E arrema­ta, no livro publicado em 1923: "A arte abrindo caminho à ciência: quando compreenderão os professores que o segredo de tudo está aqui?" (Editora Brasiliense, 1951. Obras completas de Monteiro Lobato, volume 10, págs. 8 e 9).

Na síntese do pensamento de Lobato, a visão de que o brincar, ponte curtíssima para a arte, não é mero apêndice ou floreio para preencher o tempo livre. É questão central – e vital – para a infância.

 "A escola precisa transformar o senso comum no bom senso", defende Francisco Marques. "Essa instituição, que tem o papel de fazer germinar e desenvolver isso que a criança tem, que é a vontade de aprender, tem um compromisso educativo também com os pais, de demonstrar a importância do brincar. Relacionar-se com o brincar é conferir eficiência ao trabalho educativo", completa.


Entre o novo e o ancestral

Quem seriam, afinal, os brincantes a se encantar com corrupios e outros brinquedos de antigamente? Será que apenas os mais novos ficariam cativados pelo que, aos nossos olhos, mais parece um botão que gira num fio de linha? Quem se arrisca a associar esse repertório de brincadeiras apenas às crianças menores pode se surpreender. 

Engana-se também quem acredita que muito desse universo perdeu-se no tempo. Em Giramundo e Outros Brinquedos e Brincadeiras dos Meninos do Brasil, Renata Meirelles apresenta um repertório ainda vivo no cotidiano de muitas crianças.

O livro, que reúne mais de 30 brinquedos e brincadeiras, descreve a maneira de brincar e ensina a confeccionar brinquedos bem diferentes encontrados Brasil afora. Os registros da autora vêm da observação de crianças de muitos cantos do país, mas refletem também a participação de adultos que guardam a memória cheia de aventuras infantis. São personagens como os meninos Nivam e Cleucimar, de Vila Juruamã, no Amazonas, que tornam real o que soa como invenção impossível: uma espingardinha de bambu que atira espinhos de tucumã e ainda serve para caçar insetos na beira dos igarapés. Em Abadia, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, é dona Luciana Lourenço, lavadeira, quem mantém a memória das cantigas de roda tão presentes nas brincadeiras do lugar. E vem de Canoa Quebrada, reduto de jangadeiros no Ceará, uma novidade que faz a alegria das crianças de lá: jangadinhas esculpidas na borracha de chinelos velhos, cuidadosamente costuradas à vela da embarcação, feita de varinhas de bambu e sacolinha plástica.

"Criança que faz seu brinquedo experimenta as sutilezas das formas, as regras dos materiais, a física dos eixos e curvas e oferece seu poder de observação ao objeto. Reproduz em seu fazer a cultura local, recorre a saberes e gestos universais, transitando confortavelmente entre o novo e o ancestral", descreve Renata.



Estilingue

Também chamado de atiradeira, cetra, bodoque. O nome varia, mas o propósito é um só: explorar as aventuras de pequenos caçadores, com olhar atento para garantir a precisão do lançamento. Como munição, pedrinhas, sementes, caroços ou o que mais houver.

"Seu princípio parece simples: uma forquilha de madeira ou de metal e duas tiras de borracha com um receptáculo de couro para o projétil; no entanto, assim como um bom arco de madeira, é uma peça bastante sofisticada", compara Bottini.

"A feitura de um bom estilingue exige alguns cuidados, desde a escolha da forquilha (tipo de madeira, simetria e abertura) até o corte uniforme das tiras de borracha, para evitar pontos de rompimento quando esticadas", ensina.



Pião

Rodar um pião não é tarefa fácil, mas fazer seu próprio pião, esculpindo-o na madeira, é desafio para poucos, diz Renata Meirelles, que ensina a fazer um pião diferente, "inventado" pelos moleques de Vila Jandira, em Taboão da Serra. As crianças apelaram para tampinhas de detergente acopladas a ferros-velhos de diferentes formas e tamanhos. Em volta de uma bacia de ferro emborcada, acontece o campeonato.


Como fazer

Encontre um ferro com uma abertura central redonda e uma tampinha de frasco de detergente. Tire a parte de cima da tampinha e encaixe-a no ferro. Você vai precisar de uma faquinha ou de um canivete para fazer pequenos ajustes, até que ela fique do tamanho da abertura do ferrinho.


Como jogar

Enrole uma linha forte, de preferência um pedaço de linha de pipa (número dez) na ponta da tampinha.
Coloque um lápis dentro da tampinha e puxe a linha com força, sem soltar o lápis.

Pronto, ele vai ficar rodando por um longo tempo. Junte alguns amigos, arrume uma bacia, coloque-a de cabeça para baixo e organize seus torneios.



Escada de Maracá

Caixas de fósforo, continhas e fitas coloridas. Junte-se um pouco de cola e muitos, muitos desejos. É o que basta para começar a erguer a Escada de Maracá, um dos muitos Brinquedos de  Imaginar apresentados por Francisco Marques no livro Muitos Dedos: Enredos.


Como fazer

Seis caixas de fósforo vazias, do mesmo tamanho, 42 miçangas ou continhas coloridas, do tamanho de um grão de feijão, cola e tesoura.  Reunir quinze pedaços de fita. Cada pedaço tem 1 cm de largura e 18 cm de comprimento. Podemos usar cinco cores diferentes – neste caso, usaremos três pedaços de cada cor. Para a caixa de fósforo comum (5 cm de comprimento; 3,5 cm de largura; 1,5 cm de espessura), a medida da fita é aquela mesma: 18 cm de comprimento. Para a caixa de fósforo um pouco maior (6 cm de comprimento; 4 cm de largura; 1,5 cm de espessura), a medida é outra: cada pedaço de fita deve ter 22 cm de comprimento.

Escrever um desejo no fundo de cada caixa ou, se preferir, também vale misturar desejos, adivinhas, poemas e trava-línguas. Seis ao todo, escritos no fundo de cada caixa, agora uma gavetinha de guardar desejos. Em cada uma, depositam-se sete continhas, que servem para temperar os desejos. "Enquanto temperamos, vamos cantando, conversando, contando histórias, declamando poemas…", propõe o Chico dos Bonecos.

Para colar as seis madeirinhas e ligá-las com fitas coloridas,  basta seguir o diagrama descrito no Sáiti Gudáiti (
http://www.editorapeiropolis.com.br/autores/chicobonecos/4.php

).

"Quando o brinquedo estiver pronteco terereco, vivíssimo, saracoteando, verdadeira invencionice no oco das possibilidades, vocês vão descobrir, ao acaso, várias formas – esquisitas, imaginosas, cajumerélicas, acolhedoras, poéticas, provocativas, participativas… ", diz o Chico dos Bonecos. "Podemos encaixar o dedo fura-bolo entre as caixas e criar uma tesoura dançante…. diante das formas criadas ao acaso – não se preocupem! – as crianças saberão decifrar todos os enigmas….", assegura.

Autor

Valéria Hartt


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