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Alterações no sistema de avaliação e progressão na carreira docente levam educadores às ruas em Buenos Aires; a disputa gira em torno do controle sobre o processo avaliativo

Publicado em 26/01/2012

por Luciana Taddeo, de Buenos Aires







Aldo Jofre Osorio
Manifestação de professores em Buenos Aires, na Argentina: redução do número das Juntas de Classificação Docente

Na primeira semana de dezembro de 2011, o centro de Buenos Aires, na Argentina, foi tomado pelo caos. Papéis higiênicos incendiados ardiam na porta da Assembleia Legislativa da cidade enquanto manifestantes com capuz tentavam entrar à força no prédio. A polícia respondeu com jatos de água e atirou com balas de borracha na direção de uma multidão enfurecida. A cena remetia àquela ocorrida em 2001, quando uma série de protestos culminou na renúncia do presidente Fernando de La Rúa. Havia apenas uma diferença: os manifestantes não reivindicavam mudanças na política econômica, e sim nos rumos do debate sobre a reforma do sistema municipal de avaliação e de progressão na carreira docente.


Os ânimos já estavam acirrados desde o início daquela manhã. Cerca de 400 docentes, que acampavam do lado de fora do edifício desde o dia anterior, tentaram impedir o ingresso dos deputados à sessão que discutiria um projeto de lei elaborado pela Propuesta Republicana (PRO), aliança partidária liderada pelo prefeito portenho Mauricio Macri. O projeto, que não foi aprovado pelos deputados, previa a eliminação das 14 Juntas de Classificação Docente, responsáveis pela revisão dos currículos e trajetória profissional dos professores para a nomeação e promoção de profissionais para cada nível de ensino da rede pública. A tarefa desses órgãos passaria às mãos de um Escritório Único de Classificação Docente, composto somente por funcionários da secretaria de Educação, e supervisionado por uma Junta de Controle de Designações, integrada por representantes dos docentes. No final do processo de discussão, concluída no dia 1º de dezembro, a Assembleia aprovou uma versão intermediária do projeto, que reduz o número de juntas pela metade, além de reduzir seu poder.


Histórico
Em vigência desde 1986, as juntas são separadas por níveis e zonas da cidade, e compostas por uma formação mista, alterada a cada dois anos, de seis professores eleitos pelo corpo docente e três funcionários designados pela secretaria de Educação. Uma vez ao ano, estes organismos recebem e analisam os materiais dos candidatos que buscam cargos, novos postos, efetivações ou promoções (são considerados títulos, trajetória profissional, trabalhos publicados, tempo de profissão, avaliação feita pelos diretores e capacitações realizadas pelos professores).


Após a avaliação, a junta atribui uma pontuação para cada item do currículo, cuja soma será o critério para a classificação dos profissionais em duas listas de ordem de mérito: uma para os candidatos a cobrir postos provisórios ou suplentes, que vão sendo chamados por ordem de posicionamento, à medida que as vagas surgem ao longo do ano; e outra para candidatos a promoções ou efetivações, que serão convocados para concursos. Carlos Ruiz, secretário acadêmico do curso de pedagogia social da União dos Trabalhadores da Educação (UTE), explica como funciona a atribuição de “nota” à titulação apresentada pelos docentes.


“Atribui-se à titulação um peso em função do nível em que os professores atuarão futuramente. Um mestrado ou pós-graduação em direitos e sistema de proteção da infância terá uma pontuação maior na junta de educação infantil e ensino fundamental e uma menor no ensino médio, porque não é específica para o adolescente. Mas um mestrado, mesmo que em outras áreas, terá mais valor do que um curso de capacitação, porque a carga horária também é um critério de pontuação”, exemplifica.


O porquê da mudança
Desde 2010, a secretaria de Educação portenha começou a reconsiderar a política de avaliação educativa. O órgão enxerga que há uma cultura de “não avaliação” do ensino no país, que acaba se refletindo na cidade de Buenos Aires. “Este problema levou a que não se conheça a situação real da qualidade das escolas”, explica o secretário de Educação, Esteban Bullrich. No final de 2011, a onda de mudanças chegou ao sistema de avaliação e de progressão na carreira docente. Segundo o secretário, a elaboração da proposta foi motivada por graves problemas identificados no modelo das juntas. Para ele, a pontuação atribuída aos currículos dos docentes varia de junta para junta “de forma arbitrária e pouco clara”, devido à falta de integração entre as juntas – o que poderia ser resolvido com a criação de um escritório único. “Como as pontuações variam de acordo com a junta, os docentes não conseguem se planejar”, explica.


O segundo ponto mencionado pelo secretário é o tempo levado para o processamento de dados dos concursantes. “Em alguns níveis, sobretudo no médio, tínhamos 4 mil docentes que nunca foram efetivados em seus cargos”, exemplifica. O secretário defende que, com o escritório único e um banco de dados informatizado, o Estado assumirá o compromisso de tornar o sistema mais claro e transparente, o que permitirá que o planejamento de carreira seja feito em longo prazo. A transparência se deveria à “despersonalização” do processo de pontuação curricular dos docentes, mediante a incorporação de tecnologia. “A coluna vertebral da reforma é passar de um sistema que depende exclusivamente do acionamento humano e que carece de controle a um sistema técnico de designação e qualificação dos docentes”, diz o texto da lei enviada à avaliação dos deputados portenhos.


No modelo vigente até então, os docentes devem apresentar sua documentação pessoal e currículo pessoalmente para as juntas, a cada convocação aberta. Os integrantes destas passam os dados de cada candidato manualmente para fichas, de acordo com a pontuação estipulada a cada começo de ano, o que torna o trabalho mais demorado para as juntas de níveis educativos com maiores demandas de docentes. A proposta defendida por Bullrich prevê a inscrição pela internet de todos os candidatos a efetivações e promoções, que serão registrados em um banco de dados, usado para convocações para todos os níveis de ensino. Neste caso, os dados e antecedentes dos professores não terão de ser enviados e revisados a cada ano, e o docente somente terá de se apresentar na secretaria de Educação quando houver atualizações em seu currículo, para entregar cópias dos diplomas ou documentos que atestem a inclusão destes novos itens no cadastro digital.


Meio-termo
A lei finalmente aprovada pelos deputados portenhos foi uma proposta intermediária entre o sistema atual e a proposta da prefeitura. O texto, de autoria do deputado Sergio Abrevaya, da Coalizão Cívica (CC), estipula a redução do número de juntas para sete e exclui a participação de representantes docentes na elaboração das listas por ordem de mérito. As juntas passarão a supervisionar o processo de classificação dos professores, que será realizado por uma comissão da secretaria de Educação, com funcionários para isso designados. A modernização proposta pelo PRO também foi mantida no projeto de lei.


Para Carlos Oroz, secretário-geral da Associação Docente de Ensino Médio e Superior (Ademys), o projeto mantém a eliminação da participação docente no processo. “Como o escritório de classificação não tem representação mista, o papel destas sete juntas terá seu poder esvaziado. Se houver algum protesto dos docentes, a decisão final será de representantes legais do ministério”, queixa-se. Em concordância com a rejeição do colega, a professora e bibliotecária Norma Aguinaga, que atua há dois anos na junta de educação primária da zona sul da cidade de Buenos Aires, discorda que o sistema de classificação docente vigente até agora não seja transparente. “Ao serem organismos colegiados, eleitos pelos docentes, renovados a cada dois anos e terem uma representação do ministério, as juntas são um sistema transparente porque permitem que os históricos sejam analisados por mais de uma pessoa e revisados mais uma vez”, explica.


O secretário Bullrich, entretanto, acredita que o sistema de juntas apresenta um problema de base e não pode ser melhorado. “O desenho é muito burocrático e representa uma desproporção no sentido de quem controla o sistema. Os seis membros da junta são docentes sindicalizados, o que tornava pouco clara, transparente e objetiva a forma de classificação”, afirma. Bullrich acredita que, por serem minoria, os representantes do poder Executivo acabam sendo “testemunhas” deste processo.


Debate maior
Pablo Imen, docente e pesquisador de políticas educativas na Universidade de Buenos Aires (UBA) e no Departamento de Educação do Centro Cultural de la Cooperación Floreal Gorini, avalia que um dos riscos do projeto aprovado é a “inversão” de arbitrariedade. Se antes ela era atribuída aos sindicatos, corre-se o risco de depositá-la nas mãos da prefeitura da cidade. “Um governo que trabalha no conflito, com esse poder nas mãos, pode passar a premiar ou castigar docentes”, afirma. Segundo ele, se o secretário de Educação quer garantir a transparência do processo de classificação, deve ampliar a participação no processo em vez de diminuí-la, concentrando as decisões no poder Executivo.


Citando como exemplo positivo a reforma no sistema educativo da Venezuela, onde os docentes são avaliados por si mesmos, pela direção das escolas, pelos alunos e pela comunidade em que atuam, o educador afirma que a discussão sobre a finalidade das juntas esconde outra maior, sobre o modelo educacional de Buenos Aires.  “O que me preocupa é que o debate ofusca outro mais importante, que é a função da educação. O que se considera para a promoção de um docente? Quem garante que quem tem mais cursos ensina melhor? Primeiro, temos de entrar em acordo sobre como se constrói o conhecimento. Para isso, são necessários um planejamento e uma avaliação coletivos, além de uma formação vinculada à prática”, opina.

Autor

Luciana Taddeo, de Buenos Aires


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