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Arte e Cultura

Veias abertas de Eduardo Galeano

Revelar e rebelar-se são dimensões que se conjugam na obra do uruguaio, para quem a escrita está ligada à noção de integridade frente àquilo que se vê

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

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O jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) escreve apaixonadamente, e é a paixão, acompanhada não raramente pela indignação, que faz de seus textos ocasião de aprendizado.

Os textos (as aulas) deste professor-autor-repórter são marcados pela necessidade de comunhão. Sua intenção é denunciar as dores e compartilhar as alegrias, diminuir a solidão própria e a dos outros. É esse o “espírito” de sua obra, que se encarna em informações (desagradáveis, incômodas, passíveis elas também de análise), na maior parte das vezes omitidas pelos grandes meios de comunicação e… pelos livros didáticos.

Muitos vêem com suspeita a facilidade com que Galeano escreve e a facilidade com que é lido. Renunciando à linguagem cifrada de certos sociólogos, politicólogos e economistas, parece estar inventando histórias ou carregando as tintas do drama humano. Sem recorrer à retórica, ou ao texto belamente hermético, renuncia automaticamente ao prestígio acadêmico.

Se escrever com verdade é escrever com sangue (dizia Nietzsche), é sobre sangue que o escritor uruguaio fala, contando-nos, entre centenas de outros relatos, que a empresa norte-americana Hemo Caribbean pagava US$ 3 por litro de sangue a um doador haitiano. O precioso produto era revendido por um valor sete vezes maior nos Estados Unidos. Este blood business torna-se metáfora de outras tantas situações de exploração na América Latina, nas quais os mais pobres têm de vender sua vida para sobreviver!

Seu livro mais conhecido, As veias abertas da América Latina, publicado em 1971, recebeu um posfácio sete anos mais tarde, com outras notícias sobre “sangue humano ofertado nos altares da produtividade”. Entre elas, a história da brasileira Carolina Maria de Jesus, cujo livro Quarto de despejo, relato vivo sobre a situação dos favelados brasileiros, fez um grande… e efêmero sucesso, aqui e no exterior. Em 1977, a autora morreu na mesma miséria que registrara com uma linguagem dura e comovente.

Porque são duras e comoventes essas aulas de realidade. Mas há também esperança. “Cada ato de destruição”, Galeano nos ensina, “encontra sua resposta – cedo ou tarde – num ato de criação” (Posfácio de As veias abertas da América Latina).


A pergunta salvará o escritor e o estudante

É preciso fazer a linguagem sangrar, fecundar a folha em branco. Galeano trabalha com a palavra como quem não tem tempo a perder. Tempo é criação. Escreveu As veias abertas em três meses, depois de muito ler, ver e ouvir. As palavras são gotas de sangue com que se desenha na página um retrato, auto-retrato.

Quando estudante, Galeano teve problemas em sala de aula. Fazia perguntas “inconvenientes”, pondo em dúvida o que os professores transmitiam. “Fui um péssimo estudante de história”, conta no livro Ser como eles (1992), o que, em determinadas circunstâncias, como era o caso, deixa de ser uma avaliação negativa. Foi a literatura (o cubano Alejo Carpentier, o chileno Pablo Neruda, inicialmente) que lhe mostrou o passado em movimento, a palavra a serviço da inteligência e da sensibilidade. A pergunta inoportuna do aluno interessado pode ser vista como ato de rebeldia e, portanto, motivo de reprovação. Aliás, Galeano descobriu na palavra “rebelar” uma ambigüidade iluminadora:

Pertenço a uma terra que ainda se ignora a si mesma. Escrevo para ajudá-la a se revelar – revelar, rebelar – e buscando-a me busco e encontrando-a me encontro e com ela, nela, me perco. (em Ser como eles)

Quem muito pergunta provoca revelações, e revelações podem gerar rebeliões. Galeano aprendeu porque perguntou:


E descobri perguntando. Perguntando e me perguntando de onde vinha este planeta que habitamos, que a cada minuto gasta um milhão de dólares em armamentos para que a cada minuto trinta crianças morram impunemente de doenças ou fome. Perguntando e me perguntando: este nosso mundo, este matadouro, este manicômio, é obra de Deus ou dos homens? Que tempo passado pariu este tempo presente? Por que uns países fizeram-se donos de outros países, e uns homens donos de outros homens, e os homens donos das mulheres, e as mulheres das crianças, e as coisas donas das pessoas? (em Ser como eles)

O mau estudante nas aulas de história redescobre a história, pelo avesso. E isto podemos aprender, sempre. A pesquisa intensa e contínua, a curiosidade intelectual como demonstração de responsabilidade. As obras consultadas por Galeano para escrever seus livros ultrapassam a lista convencional e contam outras histórias. A trilogia Memória do fogo é o livro da saga latino-americana que o autor jamais teria encontrado numa biblioteca, se ele próprio não o criasse. Era preciso reinventar, com lirismo e emoção, o que se escondia em fontes dispersas, o que se encontrava perdido como projeto unificado. Conhecer e ressuscitar, por exemplo, tradições esquecidas:

Acreditam os guaranis que o mundo suplica ao Pai Primeiro que solte o tigre azul que dorme debaixo de sua rede. Acreditam os guaranis que algum dia esse tigre justiceiro rasgará este mundo para que outro mundo, sem mal e sem morte, sem culpa ou proibição, nasça de suas cinzas. Acreditam os guaranis, e eu também, que a vida bem que merece essa festa. (em Contra-senha, 1985)


Contra a pedagogia do medo

Os textos de Galeano se destacam pelo constante espírito crítico, pelo questionamento das versões oficiais, pela desconstrução das histórias definidas arbitrariamente pela ideologia dominante. É importante exercitar-nos criticamente, aplicando a visão crítica a tudo (inclusive aos textos de Galeano), e mesmo às (singelas?) histórias infantis que o autor, em seu recente livro Espelhos (2008), chama de “obras terroristas”:

João e Maria avisam que você vai ser abandonado pelos seus pais, Chapeuzinho Vermelho informa que cada desconhecido pode ser o lobo devorador, e a Gata Borralheira obriga você a desconfiar das madrastas e suas filhas. Mas entre todos os personagens, o Bicho-Papão é o que com maior eficácia ensinou a obediência e difundiu o medo nas hostes infantis.

Para combater a pedagogia do medo, nada melhor do que o conhecimento. Perguntar e conhecer são os atos que constituem a forma mais inteligente de vencer o medo paralisador. O estudo torna-se instrumento para denunciar a manipulação, as estratégias de exploração e domínio. O mais fraco, o mais vulnerável, perde a ingenuidade, torna-se capaz de defender-se daqueles que pretendiam oprimi-lo.

O racismo, o sexismo, a homofobia, a xenofobia e outras atitudes de ódio e desprezo (eu acrescentaria o “adultismo”) devem ser combatidos com a inteligência e a leitura, com a reflexão e a palavra. O que nos lembra a convicção de Sócrates, quando dizia, talvez de modo exagerado, que o conhecimento nos leva a realizar necessariamente o bem.

Em Espelhos, Eduardo Galeano faz uma observação inicial:

Aqui não há fontes bibliográficas. Não tive outro remédio a não ser suprimi-las. Percebi a tempo que iam ocupar mais páginas que os quase seiscentos relatos deste livro.

Sacrificando uma exigência das normas acadêmicas – citações, referências bibliográficas explícitas… -, Galeano uma vez mais opta pelo mais importante: rever e recontar as histórias, ouvir a voz dos anônimos, revelar os muitos mundos que existem dentro do mundo.

 

Autor

Gabriel Perissé


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