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À sua imagem e semelhança

Freqüência e a maneira como as produções audiovisuais criam representações da escola denotam a (des)importância a ela atribuída pela sociedade. No cinema brasileiro, tema é marginal; TV consagra estereótipos

Publicado em 10/09/2011

por Sérgio Rizzo


Darlan Cunha, Renan Augusto e Sophia Reis em Meu Tio Matou um Cara, de Jorge Furtado: rara presença do cotidiano estudantil como oportunidade de sociabilização para adolescentes, com amigos que se vêem diariamente em escola de ensino médio de Porto Alegre (RS)

Pesquisadores interessados em investigar como o cinema dos EUA representa a escola e os educadores, contribuindo para a difusão de certas imagens sociais, têm extensa matéria-prima sobre a qual trabalhar. Dramas, comédias e suspenses ambientados em instituições de ensino – da pré-escola à universidade, envolvendo alunos e professores de perfis variados – constituem quase um gênero à parte, tamanha a oferta de títulos.

Além disso, a presença da escola nos EUA se manifesta também, indiretamente, em filmes que não a elegem como tema principal, mas que trazem personagens em idade escolar. Lembre-se, por exemplo, das situações em que uma família se reúne em torno da mesa para o café da manhã, cumprindo o ritual com certa rapidez para que as crianças e adolescentes da casa, já com as mochilas penduradas às costas, possam chegar a tempo para as aulas do dia.

Essa espécie de referência, no cinema e também na televisão, sugere que a escola se inscreve de tal modo no cotidiano da sociedade que não é possível representar o dia-a-dia sem assinalar a sua interferência durante ao menos 15 anos da educação básica de um cidadão. Qualquer roteirista de Hollywood sabe que um personagem na faixa dos 5 aos 20 anos ganhará verossimilhança se um de seus traços for a relação com a escola, em seus ciclos letivos e de férias. Caso ele não a freqüente, a omissão será expressiva de certa condição econômica e cultural.


O filme francês Ser e Ter, dirigido por Nicolas Philibert: sucesso de bilheteria ao registrar atividades cotidianas de uma escola de classe única em pequena cidade do interior

O uso recorrente de professores como personagens, por sua vez, aponta inicialmente para o reconhecimento social de sua existência. Se aparecem com insistência em filmes e seriados de TV, é porque, em primeiro lugar, a indústria cultural os identifica como uma categoria profissional de características próprias, que são conhecidas de todo espectador porque, afinal de contas, ele conhece ou conheceu dezenas deles, talvez centenas. Obras de ficção sobre astronautas ou físicos nucleares lidam com fantasias do público sobre o que fazem esses profissionais difíceis de encontrar. Obras de ficção sobre professores trabalham com elementos que toda pessoa alfabetizada tem meios de associar à própria experiência em sala de aula.

Além disso, relações de enfrentamento ou de inspiração – e, em alguns casos, a ocorrência simultânea de ambas – entre professores e alunos sempre foram consideradas fontes inesgotáveis de tensão e emoção para o cinema dos EUA. Entende-se, de acordo com essa perspectiva, que a escola é ambiente privilegiado para falar do mundo. Ambientes estudantis autoritários representariam, assim, a camisa-de-força que a sociedade procura vestir em seus cidadãos, especialmente os mais rebeldes. No extremo oposto, espaços libertários (ou educadores compromissados com a liberdade em espaços majoritariamente opressores) ilustrariam a defesa do livre-arbítrio como uma das principais qualidades humanas e a importância da escola (e de certos professores) para preservá-lo e incentivá-lo.


Walmor Chagas como funcionário de uma fábrica do ABC paulista em São Paulo S/A, de Luiz Sérgio Person: aulas de inglês como investimento na "empregabilidade"

A representação do educador-inspirador encontra em Ao Mestre, com Carinho (1967), ambientado em uma escola de Londres, um de seus exemplos mais populares e lembrados quando se trata de enumerar os "mestres que o cinema consagrou" – o que, imagina-se, tem afetado  o imaginário social a respeito da profissão desde o final dos anos 60. Outra vertente, a do professor inexperiente que encontra formas heterodoxas de se aproximar dos alunos e lhes transformar a rotina escolar (ou a própria vida), se manifesta em filmes como O Preço do Desafio (1988) e Mentes Perigosas (1995). A escola como espelho da sociedade, que se alimenta de suas contradições e trabalha para reproduzi-las, é idéia que orienta, em linhas distintas, filmes como Eleição (1999) e Elefante (2003).

Na produção européia e asiática que chega ao Brasil, os exemplos são também numerosos. O cinema britânico, que fez da personagem de Maggie Smith em Primavera de uma Solteirona (1969) o equivalente feminino em termos de popularidade ao professor interpretado por Sidney Poitier em Ao Mestre, com Carinho, transformou recentemente em um dos maiores fenômenos de bilheteria de todos os tempos uma série de longas-metragens ambientados em uma escola – de bruxos, é bem verdade, mas ainda assim uma escola que se comunica com a conservadora tradição escolar britânica: Hogwarts, onde estuda Harry Potter, o aluno-bruxo que tornou milionária a escritora J. K. Rowling.

Na França, o clássico Zero de Comportamento (1933) – cujo subtítulo original é "jovens diabos no colégio" – foi tão revolucionário em sua visão da escola reacionária francesa da época que teve problemas com a censura do país durante muitos anos. Adeus, Meninos (1987) é outra produção francesa de grande popularidade na representação da escola, mas o fenômeno mais recente foi o documentário Ser e Ter (2002), que se transformou em sucesso de bilheteria (e, por causa disso, objeto de discussão judicial entre os realizadores do filme e o professor-personagem) ao registrar as atividades cotidianas de uma escola de classe única (onde aprendem, juntas, crianças de diversas idades sob acompanhamento de um só professor) em pequena cidade do interior.


Alunos de ensino médio em Malhação: a academia de ginástica que deu nome ao programa, criado em 1995, cedeu espaço, em 1999, para o colégio Múltipla Escolha, palco de romances e rivalidades

O italiano Pai Patrão (1977), os iranianos Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987) e Filhos do Paraíso (1997) e o chinês Nenhum a Menos (1999) são outros exemplos. São originários de épocas e procedências muito diferentes, de abordagens da escola e de educadores que se tornaram referenciais para o estudo da representação de práticas de ensino em todo o mundo, inclusive entre professores brasileiros em cursos de qualificação profissional e encontros destinados à reflexão sobre a atividade. Nessas circunstâncias, a oportunidade de trabalhar com a produção ficcional ou documental brasileira seria altamente recomendável, mas é dificultada pela escassez de títulos.

Cineastas, no Brasil, vêm majoritariamente das classes média e média alta. Hoje, é difícil encontrar um deles que não tenha formação universitária. Alguns dos principais cursos de audiovisual são oferecidos por universidades públicas. Por que profissionais com esse perfil raramente mostram interesse pelo universo escolar? Tantos anos passados em bancos escolares não lhes chamaram a atenção para as oportunidades de falar sobre educação? Parece mais razoável supor que não tenham sensibilidade ao assunto diferente da média da população brasileira – nem especialmente maior, nem especialmente menor.

Assim, a pequena incidência de filmes sobre o tema decorreria, em boa medida, da irrelevância que parcela significativa da sociedade brasileira atribui à escola, sem a devida compreensão dos efeitos econômicos e sociais provocados pela baixa escolaridade, bem como dos mecanismos de sociabilização acionados pela educação básica. O cineasta João Jardim, diretor do documentário Pro Dia Nascer Feliz (2006), raro mergulho no universo escolar brasileiro, reforça a hipótese ao lembrar que, durante a fase de captação de recursos para a realização do longa-metragem, ouviu inúmeras vezes das pessoas a quem apresentava o projeto que "não há filme aí" – como se não houvesse razão de ser em visitar escolas, ouvir professores e alunos, e tentar entender o que se passa entre eles hoje, no Brasil.

Dessa forma, a escola costuma entrar sorrateiramente em filmes que não têm como objetivo falar dela. Em São Paulo S/A (1965), de Luiz Sérgio Person, os dois personagens principais – interpretados por Walmor Chagas e Eva Wilma – se conhecem durante as aulas de um curso de inglês. O que os leva até lá – e não a um curso universitário – é a perspectiva utilitarista, durante o processo de industrialização de São Paulo na passagem dos anos 50 para os 60, do uso do idioma estrangeiro para inserção no mercado de trabalho. Utilitarista e premonitória, ao antecipar em algumas décadas a importância que o inglês viria a adquirir para a chamada "empregabilidade" de quem, em geral, fala e escreve mal o português, mas se vê obrigado a aprender os rudimentos de outra língua. Além disso, as seqüências de sala de aula do filme caracterizam o ensino formal como algo mecânico, decorativo, bem pouco eficaz. Os alunos parecem robôs dedicados apenas à memorização.

Embora milhões de famílias do país dependam, integral ou parcialmente, da renda proporcionada pelo trabalho de um ou mais de seus integrantes no setor de educação, um único longa-metragem elege professoras como protagonistas e as trata como seu principal objeto de interesse por causa dessa condição: Anjos do Arrabalde (1986), de Carlos Reichenbach, em que Betty Faria, Clarisse Abujamra e Irene Stefânia interpretam professoras da rede pública na periferia de São Paulo. Uma delas precisou abandonar a sala de aula por pressão do marido machista; outra, das mais dedicadas ao trabalho e muito eficiente, enfrenta preconceito na escola por causa de seu comportamento sexual; a terceira, solitária, despeja nos alunos a amargura de se dedicar profissionalmente a algo que não lhe dá satisfação.

No cinema brasileiro, são diminutos até mesmo os exemplos de filmes sobre crianças e jovens que os mostrem na escola ou a caminho dela, como os recentes Meu Tio Matou um Cara (2004), de Jorge Furtado, sobre adolescentes, e Proibido Proibir (2007), de Jorge Durán, sobre universitários. No primeiro, a escola é representada como espaço em que os personagens se conhecem e interagem; no segundo, a escolha de um curso universitário – de Medicina e de Ciências Sociais – ajuda a expressar como os jovens da trama procuram se inserir na sociedade e como vêem alguns problemas do país, entre eles a desigualdade social e a corrupção.


Mulheres Apaixonadas, novela de Manoel Carlos, de 2003: boa parte da ação se ambientava na fictícia Escola Ribeiro Alves, onde atitudes discutíveis eram tomadas por professores

A situação não é muito diferente na ficção televisiva, que atinge público muito maior do que o cinema. O seriado Malhação e o humorístico Escolinha do Professor Raimundo são representantes populares da visão caricatural, pouco interessada em representar o que se experimenta dentro do universo estudantil, e sim em propiciar circunstâncias de encontro para os personagens, no primeiro caso, e de ridicularizar situações de ensino e aprendizagem em registro inteiramente cômico, no outro. A desculpa do humor – sempre uma eficiente ferramenta para a criação de estereótipos de aparente inocência, mas de efeitos duradouros e perversos — é usada também pelos programas Casseta e Planeta, na caracterização de uma professora como prostituta, e Zorra Total, na estigmatização de um aluno "burro".

Faz sentido a preocupação de educadores com essas imagens em circulação pela mídia: como as representações do professor e da escola são poucas, cada  aparição é vista com a lupa da suspeição, pois se atribui a ela a responsabilidade de difundir conceitos sobre a profissão para dezenas de milhões de espectadores sem que haja possibilidade de confrontar esses conceitos com outras visões. A história seria outra se quase toda telenovela tivesse professores e alunos entre seus personagens; nessa hipótese, o conjunto de representações, ao longo do tempo, se encarregaria de projetar socialmente certa imagem. O que ocorre, ao contrário, é o temor de que as raras aparições alimentem estereótipos que se cristalizem por falta de contraste.


John Robinson faz um dos alunos da imensa escola de ensino médio recriada em Elefante, de Gus Van Sant: leitura poética, com liberdades dramáticas, sobre a tragédia de Columbine, em Littleton (Colorado), acompanhando um dia na rotina de professores e alunos

Foi o que muitos educadores viram na Escola Ribeiro Alves criada pela telenovela Mulheres Apaixonadas (2003), repleta de atitudes discutíveis do ponto de vista ético entre direção e corpos docente e discente, mas que, na estrutura naturalista da ficção na TV, soam como "retrato" da realidade, e não como  recriação. É o mesmo problema que muitos vêem atualmente na telenovela Sete Pecados, cuja ação se ambienta, em parte, dentro de uma escola pública na periferia de São Paulo, com uma jovem diretora (Gabriela Duarte) que assumiu o cargo há pouco tempo e, apesar da pou­ca experiência em situações de crise, es­tá determinada a resolver os sérios problemas vividos ali por professores e alunos. Essas duas categorias de perso­na­gens são apresentadas por meio de estereótipos que, se correspondem em tra­ços gerais ao que se encontra em inú­meras escolas, produzem atitudes e comportamentos que seriam improváveis em situações concretas.

Como ocorre sempre que se lida com representações na ficção, o que elas dizem – ou deixam de dizer – costuma ter mais a ver com o emissor do discurso do que com o seu objeto. Dessa forma, analisar as visões da escola no cinema e na TV aponta para um caminho que tem pouco a oferecer sobre o entendimento de como é a escola, sobretudo para quem a conhece na batalha do cotidiano, mas que revela muito sobre como muitos pensam e imaginam que ela seja, ou que ela deveria ser. Se a expectativa é mãe da frustração, eis um tema a manter sempre em pauta.

Autor

Sérgio Rizzo


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