Os processos de constituição lexical por meio das palavras criadas por Guimarães Rosa
Publicado em 10/09/2011
"Vez em quando, batia o vento – girava a poeira brancada, feito moído de gesso ou mais cinzenta, dela se formam vultos de seres, que a pedra copia; o goro, o onho e o saponho, o osgo e o pitosgo; o nhã-ã, o zambezão, o quibungo-branco, o morcegaz, o regonguz, o sobre-lobo, o monstro-homem." (Guimarães Rosa. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 642-643)
Nesse texto, Guimarães Rosa, que foi um mestre no manejo do léxico, fala dos vultos que o vento parece formar com a poeira calcária num lugar desolado. Para dizer quais são esses vultos, ele cria palavras que expressam sua estranheza. Podemos entendê-las, consultando um dicionário especializado, como O léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins:
"Goro" é um substantivo formado do verbo gorar e significa "o que se frustrou, o ser informe, incompleto".
"Onho" é a terminação da palavra "medonho", indicando o que é horrível; "saponho" é um vocábulo constituído de sapo + onho, denotando um sapo gigantesco e muito feio.
"Osgo" significa lagartão, dragão (na língua existe o termo osga, que tem o sentido de "lagartixa": o autor deu a ele a desinência de masculino, para mostrar que o lagarto tinha um porte muito grande); pitosgo quer dizer "ser que enxerga muito mal" (em português existe a palavra pitosga, cujo significado é "cegueta": o autor transformou-a em masculino, para designar o ser fantasmagórico, que enxerga mal).
"Nhã-ã" indica a raiz do termo anhangá, que é o diabo para os índios tupis; "zambezão", vocábulo que significa "monstro africano", formado a partir do substantivo Zambeze,
rio africano.
"Quibungo-branco": "quibungo" é palavra que significa, em lendas africanas, "monstro devorador de meninos": a esse termo, acrescentou-se o adjetivo "branco", constituindo um composto; "morcegaz", vocábulo que designa "morcego grande", criado do substantivo morcego e do sufixo az, que serve para formar aumentativos.
"Regonguz" significa "ser que produz um som áspero": é um termo formado a partir do verbo "regougar", que quer dizer "resmungar, produzir um som áspero"; "sobre-lobo" tem o sentido de "grande lobo": composto estruturado com sobre, que aqui indica excesso, + lobo; "monstro-homem", composto de monstro + homem. Observe-se que palavras são criadas em função das necessidades de comunicação e
de expressão.
Reflexo social
O léxico de uma língua é constituído da totalidade das palavras que ela possui. Ele mostra-nos a quantidade e o tipo de conhecimentos que um povo detém. É reflexo da vida sócio-econômico-cultural de uma comunidade lingüística, de sua história, e, portanto, revela sua vida material e espiritual.
O léxico de uma língua organiza-se a partir de três fontes:
a) a herança do idioma de que ela proveio;
b) o empréstimo estrangeiro;
c) a formação vernácula.
As línguas estão em constante mudança. Ao longo dos séculos, as mudanças de um idioma vão acumulando-se e ele transforma-se numa outra língua. O português proveio do latim: não do latim culto, mas do latim popular, chamado latim vulgar. Foi o latim falado pelos soldados e mercadores, que foi introduzido na Península Ibérica, quando os romanos a conquistaram. Por isso, a primeira fonte do vocabulário do português é a herança latina, constituída de termos que vieram do latim: cavalo, boca, magnitude etc.
Depois que os latinos dominaram por séculos a Península Ibérica, ela foi invadida pelos germânicos, que acabaram por adotar a língua dos romanos, mas legaram diversos termos, sobretudo relativos à guerra e à administração, para nosso vocabulário: guerra, trégua, banir, dardo, elmo, branco, guardar etc.
Influências de fora
Três séculos depois da ocupação germânica, a península sofre a invasão dos árabes, que introduziram na língua palavras relativas à agricultura, à indústria, às ciências e às artes, aos jogos, ao comércio e à administração: alambique, álcool, álgebra, alecrim, alfaiate, algarismo, alqueire, armazém, arroba, carmesim, garrafa, mesquinho, oxalá, xadrez, xarope etc.
Depois, os contatos mercantis e culturais com outros povos, como franceses, italianos, ingleses, espanhóis, russos, húngaros, turcos, poloneses etc. foram enriquecendo nosso idioma com empréstimos vindos das línguas faladas por eles. Hoje, a grande fonte de empréstimos é o inglês dos Estados Unidos, por causa da posição que esse país ocupa no mundo. O léxico testemunha a história de um povo: as invasões que sofreu, os contactos culturais que manteve etc.
O léxico de uma língua possui um conglomerado de formas provindas de fontes diversas e não se pode evitar o empréstimo lingüístico, um dos meios de renovação lexical, a menos que um povo fique isolado de todos os demais.
Na própria língua
Outra fonte do léxico é a formação vernácula, isto é, a formação de palavras no interior da própria língua, por meio de uma série de procedimentos. Veja a frase
que segue:
"O ‘dudismo’ levou a cabo intensa lavagem cerebral e a tendência de ‘experimentar’ fez o resto." (O Estado de S. Paulo, 29/3/2004, p. A3)
Esse período foi retirado da carta de um leitor, em que ele comenta os rumos do poder público. Diz que o governo ganhou as eleições por obra de intensa propaganda levada a cabo pelo publicitário Duda Mendonça. Cria a palavra dudismo, formada do nome próprio Duda + o sufixo -ismo, que indica "doutrina, escola, teoria ou princípio artístico, filosófico, político ou religioso". O leitor, com o termo dudismo, ironiza a vida pública brasileira, considerando que a publicidade, independentemente de seu conteúdo, torna-se a "doutrina" que orienta a ação política em nosso país.
O léxico de uma língua é bastante móvel. Mudam-se as necessidades de comunicação, altera-se o léxico. Não se pode legislar sobre ele. O uso é sua suprema lei.