Desde criança vivemos uma vigilância sobre o uso do idioma
Publicado em 10/09/2011
Um dos cuidados fundamentais da educação lingüística, a "correção da linguagem" começa nos primeiros ensaios da fala da criança em contato com seus familiares, que são, em geral, os primeiros professores de língua que ela conhece, correção que se prolonga pelo resto da vida. Entre esses professores, está, sem sombra de dúvida, em lugar de relevo, a mãe, razão por que – talvez – se diga da língua nativa "língua materna" (e não "língua paterna"), pois com ela a criança mantém, nos anos iniciais da existência, contato mais amiudado e profundo.
É nessa fase que surgem as primeiras observações em busca de um padrão lingüístico "normal", isto é, que respeite a normalidade do uso vigente no seio da família. As correções iniciais incidem na articulação dos fonemas da língua, especialmente aquelas articulações que a criança domina por último (a troca do r por l); são ainda dessa fase os avisos quanto à troca de posição de fonemas dentro da palavra (cardeneta por caderneta), a certos grupos consonantais menos comuns no dia-a-dia (biciqueta por bicicleta), a certos desvios de acentuação tônica (gratuíto por gratuito, récem por recém).
Como, por essa quadra da vida e mais adiante, a criança domina o sistema da língua, isto é, o "regular", mas não a norma, isto é, o "normal" no uso (nem sempre há coincidência entre o sistema e a norma da língua), vêm as correções nas formas nominal e verbal do tipo "não é padrinha, e sim madrinha"(a criança já intuíra que na oposição -o final/-a final faz o idioma a oposição masculino/feminino, como em tio/tia, primo/prima etc.); "não é fazi e sim fiz"; "não é fazeu, e sim fez"(ao peso de flexões como temi, perdi e temeu, perdeu); "não é trazi, e sim trouxe", "não é trazeu, e sim trouxe" etc.
Ao entrar para as séries iniciais da escola e já alfabetizada, a criança deve ter aprendido a evitar a maioria desses enganos de língua, se a ação da família foi efetiva e constituiu um modelo eficaz ao bom desempenho lingüístico do nosso jovem. Nos bancos escolares, começa a conhecer uma nova modalidade de língua; a escrita, que passa a conviver com a até então exclusiva língua falada de sua bagagem idiomática.
O risco do padrão
À medida que a escola vai oferecendo ao nosso jovem as páginas de histórias, poesias, crônicas, alguns enganos de ordem lingüística e pedagógica se vão fixando em sala de aula de língua portuguesa, enganos de conseqüências perigosas e funestas devido ao trabalho e ação de professores mal informados e à aprendizagem de alunos mal orientados.
O primeiro engano de natureza lingüística é a suposição de que a língua portuguesa desse momento é uma realidade homogênea e unitária, e a sua única e legítima expressão é a língua padrão refletida e concretizada nos textos escritos veiculados pela escola entre os alunos. Esse ledo engano sinonimiza a língua portuguesa com a língua escrita, com a língua literária, com a língua padrão ou standard, de modo que português só é o que está na gramática e no dicionário, abonado pelo prestígio dos bons escritores. Fora dessa realidade, dizem os professores mal informados, "isso não pode ser dito" ou, o que é mais grave, "isso não é português" (é o caso de perguntar o aluno: "então que língua é essa, se não é português o que eu digo?").
Ora, é um lamentável engano de conhecimento de lingüística, isto é, de ciência das línguas, esse de imaginar uma língua histórica – como o português, o inglês, o francês etc. – uma realidade homogênea e unitária. Uma língua histórica é um conjunto de idiomas mais ou menos semelhantes e mais ou menos distintos, ainda que considerados num só momento de seu percurso histórico, por exemplo, o português dos nossos dias. Há nessa língua histórica diferenças regionais, os chamados dialetos, como o português do Brasil, o de Portugal, o da África. Mesmo no Brasil ou em Portugal ou na África, persistem as diferenças geográficas: o português do Norte do Brasil, o português sulista. Numa determinada região, por exemplo, no português do Recife, notam-se diferenças nos estratos sociais desse falar regional, os chamados dialetos sociais, como a variedade da classe culta, a da classe semiculta e a dos analfabetos, a língua popular.
Existem ainda as variedades estilísticas, isto é, as que existem entre a língua escrita – em geral cuidada, tensa – e a língua falada, espontânea; entre a língua "de uso" e a língua literária; entre a língua corrente e a língua técnica, inclusive a burocrática; entre a língua da prosa e da poesia.
Variáveis das variantes
Todas essas variedades regionais, sociais e estilísticas são igualmente válidas e importantes do ponto de vista lingüístico, cientificamente falando. Está claro que cada uma é adequada ao tipo de cada falante e a cada circunstância da vida social, do nosso compromisso com o contexto e com a natureza do nosso ouvinte ou destinatário. Se erro existe, é querer usar de uma variedade quando a norma social exige outra variedade mais adequada. Por isso, está equivocada a pessoa que pensa que saber português é só saber falar empolado, difícil ou, como também se diz, falar como um livro. É o mesmo engano da pessoa que pensa que se vestir bem é vestir-se de uma só maneira, quer vá ao casamento, ao trabalho, ao cinema, à praia ou à feira. Em algum ou alguns desses momentos estará cometendo uma gafe no falar ou no vestir.
Muita gente pensa que "se aproxima" do seu ouvinte, que "o conquista" mais facilmente, falando ou escrevendo numa variedade de língua menos exigente e mais corriqueira. É como se falasse para adultos com a modalidade própria da que se usa com as crianças, porque os considera como filhos.
Falar ou escrever para outrem, ainda que de condição cultural abaixo da sua, exige dignidade, que já é uma faceta do respeito que se deve ao semelhante. Um repórter bem vestido que fale dos Estados Unidos ou da França ao telespectador brasileiro com "vi ele" ou "encontrou ela" é como se passasse, por antecipação, um atestado de ignorância ao público, por achar que "vi-o" ou "encontrou-a" são formas de dizer incompatíveis com a pouca dignidade cultural ou o baixo grau de escolaridade terceiro-mundista. Daí, talvez, preferir chamar os telespectadores de "galera", esquecendo-se de que, quando a Orquestra Sinfônica se apresenta na Quinta da Boa Vista, a "galera humilde" vibra com os clássicos e aplaude Carlos Gomes, Chopin ou Mozart. Perde o repórter que assim procede a oportunidade de instruir os que sabem menos do que ele e esperam mais da TV brasileira.
Erro pedagógico
Tão grave quanto o desconhecimento que vimos apontando é o erro pedagógico. Partindo da idéia de que essa língua padrão ou standard é uma imposição da "classe dominante", da "língua do poder", e de que o aluno já se comunica muito bem por meio da variedade viva que trouxe de casa e vigora e revigora na rua, nas praças e até em certo tipo de literatura de crônicas do quotidiano, de fatos do dia-a-dia, com intuitos de lazer e com finais humorísticos, há professores mal informados e pedagogos engajados que defendem que a variedade a ser cultivada e cultuada na escola é essa língua "natural" falada, viva e espontânea, sob a bandeira tão aplaudida pelos jovens que não querem esforçar-se na sua risonha e brincalhona passagem pelos bancos escolares, onde a exigente e suada aprendizagem não ocupa o lugar privilegiado da merenda escolar e das brincadeiras no recreio. É pedagogia de aprender brincando. Em tudo isso há, naturalmente, honrosas exceções que, pelo seu minguado número, justificam a regra.