NOTÍCIA
Edith Ackermann, psicóloga, discípula de Jean Piaget e pesquisadora da relação entre educação e novas tecnologias do MIT, diz que as crianças ganharam um novo suporte mediador da aprendizagem. E que isso não é ruim
Publicado em 03/06/2013
Mesmo num mundo onde a informação é abundante e os meios de comunicação convencionais são potencializados por meios digitais, a aprendizagem está necessariamente ligada ao envolvimento com um objeto ou uma situação na qual o aprendiz esteja imerso. Computadores, laptops e tablets podem ser enriquecedores para a aprendizagem, mas sem a mediação de educadores, o processo corre o risco de se perder e de se fragmentar. Afinal, o conteúdo puro não significa muito, pois conteúdo e processo estão imbricados.
Leia, a seguir, a entrevista que Edith Ackermann concedeu à Educação, durante sua visita ao Brasil no início de maio para participar como palestrante do evento comemorativo dos 30 anos do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Qual o impacto das tecnologias no ensino e aprendizagem?
Por mais que as novas tecnologias integrem nossas vidas cada vez mais, são necessários diferentes momentos para que ocorra a construção do conhecimento e para que a criança continue a aprender. Um deles tem a ver com estabelecer uma relação, uma conexão, com algo que faça sentido.
Há outro momento relacionado com o envolvimento; tem a ver com uma imersão, construção. Um terceiro momento, muito importante, é o que eu chamo de contemplação, ao invés de reflexão. Utilizo essa terminologia porque não gosto da maneira como os educadores tendem a criar rituais em torno da aprendizagem: “Vamos tentar…” ou “Vamos refletir sobre…”. Prefiro pensar em termos de um momento em que a pessoa está com a mente totalmente engajada, e em outro momento em que ela se coloca fora da situação e a contempla.
Um quarto momento é o que chamo de reinterpretação. É como o teatro e está relacionado com dar uma resposta. É uma reinterpretação de tudo o que intriga, que mobiliza uma pessoa. Há um quinto momento que tem a ver com colaborar com outras pessoas, que é tão intenso quanto os demais. Cada um desses momentos requer algum tipo de mediação, porque não existem experiências diretas, não mediadas. Mesmo aquelas experiências que parecem ser de primeira mão, são, de alguma forma, mediadas por aquilo que já sabemos, já vivemos. Então, a tecnologia não é, necessariamente, imprescindível para o aprendizado.
Suas pesquisas enfatizam a programação de computadores por crianças. Como isso é possível?
A programação é a arte e a ciência de criar condições para que as coisas interajam entre si e com o mundo, por conta própria. Ela possibilita que as crianças desenvolvam maneiras próprias de dar comandos e assumir o controle de determinadas situações, na medida em que elas desenvolvem, por exemplo, meios para que as coisas façam coisas (instruindo-as a seguir ordens). Quando programam, as crianças também podem animar objetos ou fazer com que eles interajam com um ambiente, seguindo determinados parâmetros.Nesse processo, elas podem seguir rumos inesperados e imprevistos pelos adultos. Mas as tecnologias são um suporte, possibilitam a mediação para processos bastante enriquecedores. A mediação também pode ser um suporte físico, um lugar, podem ser pessoas.
É nesse ponto que entra a última etapa da aprendizagem, um momento que transforma o processo em um ciclo, num continuum. E esta é parte complicada, porque a coisa mais difícil, tanto numa sala de aula, quanto em ambientes informais de aprendizagem, é superar o primeiro obstáculo, a primeira decepção – aquela que surge depois da inspiração, da confiança de que consigo fazer as coisas. Quando o primeiro obstáculo real surge, é o que de fato ajuda as pessoas a irem além. Esta é a coisa mais difícil em educação.
E é neste ponto que a orientação é necessária, pois como reagir depois da primeira decepção? Nesse momento, a orientação é muito importante para que as pessoas não se percam, para que elas mantenham o foco, o horizonte da tarefa que estão realizando.
Não basta entregar um laptop ou um tablet para cada criança?
Não, não funciona assim. Durante muitos anos trabalhei no projeto Um Computador por Aluno [concebido por Nicholas Negroponte, também do MIT] e ainda acho interessante a ideia de distribuir laptops, desde que não se presuma que as crianças vão aprender sozinhas, sem um professor. Esta é uma ideia equivocada. Mas o professor tem de partir daquilo que a criança sabe, caso contrário não há aprendizagem.
Quando trabalhava com Piaget, aprendi que informação não é conhecimento, que inteligência não processa informação e que a mente humana não funciona como um computador, codificando informação e a arquivando na memória, como se fosse uma biblioteca que podemos acessar quando necessitamos. A mente humana funciona de um modo muito mais orgânico, pois existe um paralelismo entre os processos psíquicos e físicos. Piaget diz que o conhecimento é experiência, mas é a experiência na qual uma pessoa está imersa, após ter vivenciado várias instâncias dessa experiência, como variações sobre o mesmo tema.
Como fica a escola nesse cenário?
Nenhuma instituição ou organização pode se responsabilizar, de maneira isolada, pela educação de uma criança no mundo atual. É difícil dizer o que as escolas devem ser, mas certamente não se trata de infraestrutura luxuosa ou apenas de tecnologia avançada. Uma escola pode funcionar até sem eletricidade. O que importa é a existência de um lugar de encontro. A aula pode acontecer até debaixo de uma árvore.
Existe hoje uma valorização muito grande do conteúdo. Como relacionar isso com a construção da aprendizagem?
Eu faço parte de um grupo de estudiosos que não gosta de separar o conteúdo do processo. Ao mesmo tempo vivemos num contexto em que as maiores universidades do mundo estão distribuindo o conhecimento que produzem na forma de conteúdo. Mas o acesso ao conteúdo, mesmo às aulas dos maiores professores, não assegura nada. Esse conteúdo só tem alguma utilidade para aqueles que têm algum grau de organização própria, que souberem como utilizá-lo.
O que está em questão é aquilo que Seymour Papert [matemático do MIT, criador da linguagem Logo nos anos 1970 e um dos maiores teóricos sobre o uso do computador na educação] diz: pensar é estar pensando sobre alguma coisa relevante. Essa coisa relevante é, de fato, o fenômeno que o indivíduo está questionando ou sobre o qual está aprendendo.
Então o interesse de um menino em videogames não é necessariamente ruim?
Não, de fato, não é. Os jogos têm a particularidade de criar um ambiente seguro no qual a criança sabe que pode errar. Acredito que as crianças gostam de videogames porque sabem que são uma encenação. Enquanto jogam, elas sabem que podem voltar, repetir o processo até obterem sucesso.
Nesse sentido, está havendo um debate sobre as habilidades que as pessoas devem ter no século 21.
Sim, com a perspectiva dos adultos de definirem o que as crianças devem saber para serem bem-sucedidas no mundo contemporâneo. Nos Estados Unidos, existe todo um enquadramento no sentido de combinar conteúdos com determinadas habilidades, expertises e alfabetizações para produzir determinados resultados.
Enquanto isso, estão sendo forjadas novas culturas de participação por meio de tecnologias, que dão origem a novos tipos de expertises técnicas, em áreas como o vídeo digital, animação, design de moda. Vivemos numa nova ecologia midiática, um ambiente híbrido no qual vivemos e aprendemos, em que transitamos de livros para o Facebook. São várias formas de engajamento, as formas como as crianças (e as pessoas responsáveis por sua educação) navegam, habitam, renovam esses ambientes. As pessoas não vivem em um único canal: virtual ou físico. A tecnologia não está competindo com as outras dimensões; elas coexistem.
Há riscos nesse processo?
Podemos aprender muito quando observamos como as crianças se relacionam com as tecnologias. Há estudos que mostram que as novas gerações estão desenvolvendo uma relação diferente com o mundo e com a aprendizagem. Um exemplo é a cultura de compartilhamento. Muitas vezes, os “nativos digitais” disseminam suas ideias e criações antes de elas estarem totalmente formatadas, difundindo uma cultura de colaboração, de trabalho em equipe.
Mas há dimensões às quais é preciso ficar atento. A escrita passou a ser entendida como uma justaposição de fragmentos recortados e colados ou como uma combinação de texto, imagem e som. A leitura se tornou a marcação de um texto ou extrair um trecho para ler mais tarde. A edição passou a ser vista como um meio de criação. Isso impõe um desafio enorme aos educadores, que têm de lidar com uma situação que eles consideram plágio.