Provas que medem desempenho de alunos consolidaram-se como instrumentos diagnósticos nos últimos anos; apropriação dos resultados pelas escolas precisa ser ampliada
Publicado em 10/09/2011
Em tempos de Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), as avaliações ganharam uma importância sem precedentes. Afinal, é por meio dos resultados obtidos pelos estudantes na Prova Brasil e no Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – somados às taxas de aprovação – que se procede ao diagnóstico da situação das escolas públicas de ensino fundamental e que se fixaram metas de melhoria da qualidade para os próximos 13 anos, através do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Vinculados às metas estão a distribuição de recursos e acesso à assistência técnica por parte do Ministério da Educação (MEC).
À primeira vista, esse encadeamento de ações e políticas parece adequado, pois contempla instrumentos, linhas de ação e um rumo definido visando melhorar a qualidade da educação brasileira. Mas, com a intensificação do papel e do peso das avaliações, originaram-se questionamentos sobre as possibilidades e as limitações reais dessas avaliações enquanto balizadoras das políticas públicas.
Saeb e Prova Brasil foram criados para funcionar como "instrumentos de avaliação do sistema educacional brasileiro". Têm a finalidade de auxiliar "o desenvolvimento e a implementação de políticas educacionais", como professa o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), responsável pelas duas avaliações. Elas verificam habilidades e competências dos alunos do 5º e 9º anos do ensino fundamental e da 3ª série do ensino médio em língua portuguesa e matemática. A diferença é que o Saeb é realizado por uma amostra de estudantes de escolas públicas e privadas, urbanas e rurais, enquanto a Prova Brasil tem a meta de avaliar todos os alunos das escolas públicas urbanas.
Além do Saeb e da Prova Brasil, ainda há o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado há dez anos para funcionar como um exame de saída do nível secundário, ou seja, para verificar o que aprenderam os concluintes ou os estudantes que já terminaram o ensino médio. Ao longo do tempo, tornou-se um instrumento de acesso para o ensino superior, já que começou a ser aceito como parte do processo seletivo de faculdades públicas e privadas. Em nível internacional há o Pisa, programa de avaliação comparada realizado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) a cada três anos e do qual o Brasil participa desde 2000. O exame avalia estudantes de 15 anos, independentemente da série que cursam, com o objetivo de aferir o letramento (conteúdos, processos e contextos) em leitura, matemática e ciências.
Ano após ano, essas avaliações têm demonstrado que a escola está falhando no que tange à sua missão na sociedade contemporânea: propiciar às crianças e jovens conhecimentos e atitudes capazes de fazê-los participar efetiva e criticamente do mundo em que vivem. Os exames mostram que as crianças do 5º ano mal conseguem ler um parágrafo, nem sabem ver hora em relógio de ponteiro. Evidenciam ainda que os jovens de 15 anos não dominam conhecimentos científicos que permitam lidar com as tecnologias incorporadas ao nosso cotidiano, quando comparados com colegas de países como Alemanha e Coréia do Sul. Mas em que medida esse diagnóstico tem sido transformado em ações?
Difícil absorção
"Ao mesmo tempo que reconheço ser um avanço no cenário educacional brasileiro a busca de implantar e consolidar avaliações de sistemas com vistas à qualidade do ensino, constato limitações que precisam ser enfrentadas para que a avaliação venha a cumprir a função a que se propõe", analisa Sandra Zákia, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Além das iniciativas do governo federal, existem exames e avaliações estaduais e municipais. Em São Paulo, por exemplo, há o Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), cujo modelo foi redesenhado em 2007.
O primeiro questionamento que surge em relação à pertinência das avaliações é o uso que se faz delas. "Possivelmente, uma das principais limitações seja a pouca utilização das informações produzidas, o que está relacionado tanto aos delineamentos adotados nas avaliações como aos procedimentos de difusão dos resultados", continua a pesquisadora.
Ela chama a atenção para o que considera falta de clareza com relação ao público a que se destinam as informações. "Os gestores ou os profissionais das escolas? Isso tem decorrência tanto para o tipo de avaliação que vai ser feita quanto para o modo como os resultados vão ser interpretados e divulgados." E conclui dizendo que, se a perspectiva for a de apropriação pela escola, as atuais estratégias de divulgação precisam ser reformuladas, de modo a se aproximar dos códigos desse universo. "Usualmente, as escolas têm dificuldade até mesmo de ler e compreender os resultados, portanto, como utilizá-los?"
Para o presidente do Inep, o economista Reynaldo Fernandes, a estratégia de divulgação dos resultados das avaliações está relacionada à sua finalidade: atuar como um fator de mobilização social em prol da melhoria da qualidade do ensino. "Se aumenta a criminalidade, o secretário de Segurança Pública tem de responder por isso. Isso deveria acontecer em educação também, quando um Estado ou município vai mal numa avaliação."
Dentro dessa lógica, o diagnóstico fornecido por meio da avaliação atua como elemento que pode transformar práticas em sala de aula, mas isso corresponde a uma das utilidades que a avaliação pode ter. "Há um diagnóstico, o que é importante para gestores, diretores, professores, pais, alunos e a sociedade. Esse é o motivo da divulgação. A avaliação não tem nenhum impacto direto, seu papel é funcionar como motivadora", afirma Fernandes. "Quando se acha que está tudo bem, não tem avaliação, tudo se mantém como está. O sinal de que o desempenho não está bom pode ser um elemento para provocar essa mudança."
Dimensão pedagógica
Assim, as três esferas de governo têm seu papel. Enquanto o governo federal promove diagnósticos gerais, os municípios e Estados ficam com a responsabilidade de realizar avaliações complementares (em séries e/ou sobre disciplinas diferentes) a fim de subsidiar o seu planejamento pedagógico.
"Muita gente acha que as avaliações poderiam ser mais usadas. Essa é uma discussão mais pedagógica, depende de escola para escola. O papel de mobilização é mostrar que a escola não está bem. Isso pode ser importante para a mudança da educação. Toda mudança educacional vai ocorrer dentro da sala de aula", analisa Fernandes. Assim, paralelamente à difusão, o Inep realiza, nas redes de ensino, um trabalho de disseminação do instrumento e das suas possibilidades de uso.
Apesar dos esforços, ainda há um percurso a ser feito para que as escolas se apropriem dos resultados. "Há termômetros, mas o diagnóstico é complexo demais para que a simples medição do fracasso surta efeitos", comenta a educadora Myriam Tricate, diretora do Instituto Idéia. Para ela, a superação desse impasse depende de um casamento mais harmonioso entre o esforço de comunicação e uma política de formação continuada de longo prazo. "Somente assim será possível um olhar vertical sobre o desenvolvimento de cada instituição."
Ou seja, é preciso superar a visão da avaliação como um instrumento de planejamento de políticas públicas. "Uma escola de qualidade não se faz apenas com macropolíticas. A escola é um organismo vivo, multifacetado e com uma autonomia intrínseca. Por mais que se aprimorem as políticas públicas, é no contexto de uma comunidade que as escolas se estruturam."
O professor Francisco Soares, que é integrante do Grupo de Avaliação e Medidas Educacionais (Game) da Universidade Federal de Minas Gerais, compartilha a visão de que é necessário renovar o uso que se faz das avaliações no Brasil, o que perpassa a adoção de uma "linguagem pedagógica", a fim de que os dados e informações tenham a finalidade a que se destinam: melhorar a aprendizagem. Desse modo, Soares alerta que as avaliações não devem funcionar como instrumento de gestão.
O que é educação?
É bem verdade que o Ideb representa uma tentativa de utilizar os resultados das avaliações como norte das políticas educacionais. Contudo, o modelo proposto apresenta riscos, na opinião de pesquisadores e pensadores que se dedicam a estudar essa questão. Segundo a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Débora Barreiros, o problema do Ideb é o seu caráter de "comparação". Ou seja, ele cria mais uma forma de ranking entre as escolas, o que não necessariamente tem impacto positivo no plano pedagógico.
"É urgente a construção de alternativas de avaliação, em que essa prática seja vista não como classificação, mas como possibilidade de favorecimento à construção da autonomia pedagógica da escola." Assim, a pesquisadora defende que sejam desenvolvidas estratégias para que os dados obtidos sejam aproveitados nos processos avaliativos, de forma a viabilizar a construção de práticas pedagógicas emancipatórias; mobilizar os agentes envolvidos na avaliação para refletir sobre o impacto dessa prática na política educacional; criar novos padrões avaliativos alternativos ao modelo hegemônico, expressando maior interação entre os atores escolares e a sociedade.
Na opinião de Célio da Cunha, assessor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), esse debate remete a uma questão de fundo, que o antecede: o que é educação? Qual é o verdadeiro sentido da educação? Se considerarmos que o grande objetivo da educação é possibilitar às pessoas desenvolverem suas potencialidades, é possibilitar às pessoas realizarem-se nos planos pessoal, profissional e social, é inevitável perceber que as atuais avaliações oficiais possuem um limite bem definido.
"É preciso distinguir avaliação de medição. Avaliar é atribuir um valor, e esse valor só pode ser atribuído considerando a própria pessoa. Ela mesma é o paradigma, porque educação é realização", explica Cunha. "Eu posso até ter um indicador externo, mas na medida em que eu tenho esse parâmetro, estou subtraindo a idéia de educação." Em outras palavras, o processo de avaliação em educação deve levar em conta inúmeros componentes, que ultrapassam o domínio dos códigos de escrita, leitura e cálculo. "Especialmente agora, no século 21, é fundamental considerar também outros componentes, como o ético e a cidadania."
Sandra Zákia alerta que um dos riscos em jogo na atual tendência de associar resultados de desempenho de alunos com incentivos (que vão desde aumento salarial até premiação do professor ou da escola em função dos resultados) é a intensificação das discrepâncias internas nas redes de ensino, o que significa tomar a direção contrária em relação ao objetivo maior que está dando o ritmo e o rumo das políticas educacionais em todo o mundo: a garantia de acesso a uma educação de qualidade para todos.