Tendência de queda na procura pelas licenciaturas coloca em risco o futuro da profissão com prejuízo ao desenvolvimento do país
Publicado em 18/02/2014
Ritmo de ingressos nas licenciaturas ameaça o desenvolvimento da educação no país com impacto em diversas áreas e no crescimento do ensino superior. Mudanças nos currículos são apontadas como uma das principais ações para valorização da profissão docente
por Svendla Chaves
O Censo da Educação Superior aponta que o ensino universitário brasileiro vai bem – em 2012, as matrículas cresceram 4,4% e os ingressos, 17,1%. O Ministério da Educação (MEC) comemora ainda o aumento de procura pelos cursos de engenharia e os avanços no ensino tecnológico e a distância, também detectados pelo levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Um aspecto revelado no censo, no entanto, preocupa: a redução do crescimento ou estagnação em várias licenciaturas, especialmente naquelas que são cruciais para o desenvolvimento do país.
Para reverter a situação, especialistas apontam a retomada da valorização dos professores por meio de programas de carreira e melhoria salarial. Mas para além disso, destacam a importância de elaborar novos currículos, aproximando a formação da realidade.
Pela primeira vez, em 2012, houve mais ingressos nos cursos de tecnologia que em licenciaturas, o que pode indicar que o Brasil está suprindo necessidades de qualificação do mercado de trabalho; mas também está colocando em risco a formação de futuros profissionais. O número de concluintes nos cursos de licenciaturas de todas as áreas sofreu uma redução de 6% em 2012 e tem oscilado com crescimento desigual desde 2004, enquanto os outros tipos de graduação apresentaram maior desenvolvimento no período.
Na contramão do crescimento
Embora a pedagogia ainda esteja entre os três cursos mais procurados no ensino superior, esse interesse pela educação não se reflete em áreas como física, química e matemática. Conforme o Censo da Educação Básica de 2012, mais de 400 mil professores do ensino básico também são alunos da educação superior – a maior parte deles se concentra nos cursos de pedagogia (48%) e letras (10%).
Enquanto isso, de acordo com estimativas dadas pelo MEC em 2012, faltam 170 mil professores de exatas na educação básica brasileira, o que motivou a criação de um programa específico para a formação de professores nessas áreas. “Dos dez cursos mais demandados no país, que representam em torno de 50% de todas as matrículas, quase todos fazem parte de humanidades”, salientou o então ministro da Educação, Aloizio Mercadante, na apresentação do programa Quero ser professor, quero ser cientista.
Segundo o ex-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) Mozart Neves Ramos, a falta de professores já não se restringe às escolas públicas e amea‑ ça o crescimento do país. “Isso coloca em risco nosso desenvolvimento tecnológico. Nas áreas consideradas mais estratégicas, o Brasil vai ter dificuldade de estabelecer massa crítica, com reflexos negativos na inovação, na produção de conhecimento e de patentes”, reflete o professor, que foi um dos idealizadores da proposta lançada pelo MEC para incentivar a formação docente.
Ramos destaca que, dos jovens que terminam o ensino médio, apenas 2% querem ser professores. Além disso, a maior parte daqueles que conseguem terminar a graduação em química, física ou matemática não vai para o ensino público; busca mestrado e doutorado ou dá aulas em escolas particulares e institutos tecnológicos. “A carreira no magistério não é objeto de desejo dos jovens”, lamenta.
Comparando o número de concluintes de administração em 2012, por exemplo, que é o curso que mais forma no Brasil – 12,8% do total de graduados em 2012 – com o de outras áreas de formação, o levantamento do Inep mostra o tamanho da desproporção na graduação superior. A cada matemático (licenciatura e bacharelado), foram diplomados 10,8 administradores; 19,4 para cada bacharel ou licenciado em química; e 49,2 administradores por egresso da física.
Além das exatas, biologia, geografia e educação artística são outras áreas com falta de professores apontadas pelo ex‑rei‑ tor do Centro Universitário Uniabeu, Júlio Furtado, o que também indica carências regionais no interior das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Para ele, estamos no início de um “apagão” de mão de obra docente. “Esse apagão é maior no ensino público e na educação básica, onde já se registra falta de mais de 300 mil professores em todo o país. Toda essa situação é responsável por muitos alunos sem aulas ou tendo aulas com professores que não são devidamente formados no que ensinam”, considera Furtado.
O básico é a base
A situação fica mais preocupante quando se percebe que o país parece ter entrado em um círculo vicioso: a falta de oferta adequada de professores na educação básica prejudica o aprendizado dos alunos, que acabam por não se sentir atraídos pelas áreas do conhecimento mais deficitárias de professores, ocasionando a baixa procura pelos cursos de graduação.
De acordo com Relatório de Monitoramento de Metas 2011 do Todos pela Educação, apenas 10% dos alunos que terminam o ensino médio aprendem o que deveriam de matemática. Quando o assunto é docência, segundo o Censo do Professor de 2007 do Ministério da Educação/Inep, dos professores que dão aula de física, 61% não foram formados sequer em áreas correlatas. Mozart Ramos, que é professor de química na UFPE e já foi secretário estadual de Educação de Pernambuco, lembra de quando visitou uma escola no interior daquele estado em 2006. “Descobri que quem ministrava a disciplina de química era a professora de geografia. Perguntei a ela como fazia para dar as aulas e ela respondeu que simplesmente copiava os conteúdos na lousa. Depois percebi que esse tipo de situação faz parte do cotidiano do ensino no país”, relata Ramos.
Por conta da falta de compreensão do professor sobre os temas abordados, muitos alunos não enxergam sentido no que estão estudando e não entendem como aquele conteúdo dialoga com o seu mundo. Se todas as disciplinas ensinadas na escola podem ter aplicação prática no cotidiano, é preciso que os professores compreendam essas relações para explicá-las aos jovens.
O consequente despreparo dos alunos dificulta a entrada numa faculdade e é uma das principais causas de evasão no ensino superior. Isso pode ser observado especialmente nas engenharias, nas quais muitos alunos ingressam com dificuldades de realizar operações matemáticas simples, impossibilitando o desenvolvimento na área.
Clichê da valorização
Não é só por desconhecimento que os jovens estão deixando de procurar a carreira de professor, mas justamente por conhecer o dia a dia das escolas que a profissão docente acaba renegada pelos pré-universitários. A falta de condições de trabalho e os baixos salários já são tema clichê na mídia e nas discussões sobre a educação brasileira.
O estímulo pela busca de licenciaturas passa necessariamente pela reforma da identidade do professor, acredita Júlio Furtado. “É necessário um processo de revalorização da profissão que passa não só pela remuneração, mas principalmente pela reconstrução da imagem, tão deformada pela mídia, que reduz o professor ora a pobre coitado, ora a herói abnegado, ora a incompetente.” Para Furtado, essa reconstrução precisa ser capaz de atrair os bons alunos do ensino médio que escolhem outras carreiras aparentemente mais promissoras e de reter os professores que abandonam a profissão.
O projeto do Plano Nacional de Educação 2011-2020, ainda em discussão no Congresso Nacional, traz metas de valorização e formação de professores. Os itens incluem elaboração de planos de carreira por todos os sistemas de ensino e a graduação de todos os docentes do ensino básico, bem como a pós-graduação de metade deles.
Superadas as dificuldades estruturais da carreira, resta ainda investir na qualificação dos docentes. Seja em busca da qualidade da formação inicial e continuada, seja na reconfiguração da atuação do professor em razão das mudanças na dinâmica de aprendizado, os especialistas afirmam que ainda há muito a ser feito nos cursos de licenciatura.
Nesse sentido, Mozart Ramos cita a defasagem dos currículos da educação superior. “A maioria dos profissionais que formam professores nunca entrou em uma escola pública. É preciso pensar qual currículo vai atrair o aluno nesses cursos – os jovens querem uma escola que caiba na vida deles”, diz.
Parcerias na prática
É importante que as instituições que oferecem cursos de licenciatura contratem professores não apenas por sua titulação, mas também por sua experiência na educação básica. “Profissionais que conheçam o funcionamento das escolas e suas propostas pedagógicas e possam trazer para a sala de aula essa experiência”, pontua a pró-reitora de Graduação da Universidade Cidade de São Paulo (Unicid), Amélia Jarmendia Soares. Os alunos confiam mais nos professores quando eles apresentam vivência na profissão.
A experiência prática do aluno de licenciatura nas salas de aula do ensino básico é primordial. Para a coordenadora do curso de pedagogia do Instituto Singularidades, Cristina Nogueira Barelli, o estudante deve terminar a formação inicial sabendo como é a escola e a sala de aula. “Precisa haver parceria da instituição de ensino superior com as escolas de educação básica, para que o aluno tenha essa vivência”, diz Cristina.
Para poder replicar ideias e vivências, o aluno de licenciatura necessita conhecer experiências de sucesso no ensino básico. “As escolas precisam abrir suas portas para o estudante e ser corresponsáveis pela sua formação”, defende a coordenadora do Singularidades. Júlio Furtado concorda. “A formação docente precisa incluir o contato com a realidade escolar o mais cedo possível, para que teoria e prática possam realmente caminhar juntas”, complementa o educador.
De cima para baixo
Saindo do ensino básico e chegando ao próximo nível, o problema recai na disponibilidade para a contratação de professores mestres e doutores conforme a quantidade necessária exigida pelo MEC para as instituições de graduação, especialmente em algumas regiões do país e áreas de atuação.
Apesar de crescente, a formação de mestres e doutores é desigual. “Mais de 70% dos professores titulados em nível de doutorado estão nas regiões Sudeste e Sul, restando menos de 30% para as demais regiões do país”, aponta a professora e gestora da área de educação Norma Viapiana, consultora da Hoper Educacional.
Na visão de Amélia Soares, da Unicid, há falta de mestres e doutores em áreas como ciências contábeis e informática – já em setores de saúde e educação, principalmente nas capitais, existem bons programas de formação. “A presença de professores com formação stricto sensu é uma exigência para o reconhecimento dos cursos; assim, já está na prática das universidades. Nos procedimentos avaliativos, conta muito ter um bom índice de professores mestres e doutores”, diz a pró-reitora.
Outro desafio para as instituições de ensino superior é conciliar, no quadro de professores, a experiência profissional de mercado e a titulação exigida. Em geral as instituições particulares têm seus próprios programas de qualificação docente, seja oferecendo gratuidade em cursos na própria instituição, seja com auxílio para participação do docente em outros programas. Segundo Norma Viapiana, grande parte do corpo docente do ensino superior privado dedica-se acumulativamente à profissão de formação e às atividades acadêmicas. “Esta dupla atuação é desgastante, mas qualifica a ambas”, considera a consultora.
A experiência profissional dos professores também conta na avaliação externa do curso, lembra Amélia. “Quando contrata, a universidade precisa ter as duas preocupações, titulação e vivência de mercado. Se conseguir conciliar ambas, melhor.”
Professor x pesquisador
Outro ponto em questão diz respeito à qualidade da formação de docentes para cursos de educação superior e aqui entra em discussão o uso da pós-graduação stricto sensu como forte indicador de qualidade. “A formação do professor de ensino superior era entendida como a pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. Hoje percebemos que essa formação é mais voltada para o pesquisador”, polemiza o professor Marcos Masetto, líder do grupo de pesquisa Formação de Professores e Paradigmas Curriculares, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Sem desmerecer o papel do pesquisador, ele destaca que os docentes de ensino superior precisam de outras competências, que não são trabalhadas na pós-graduação stricto sensu, embora esse fosse o lugar ideal para esse tipo de formação. Para Masetto, com o avanço dos cursos de mestrado e doutorado estão se criando superespecialistas em áreas de conhecimento, mas com formação pedagógica deficiente.
Para remediar a situação, as instituições de ensino investem em serviços de apoio pedagógico ao docente, com cursos e reu‑ niões refletindo a prática; e em atividades de sensibilização de professores, com a realização de encontros sistemáticos para estudar e rever práticas. Outra opção são os cursos de especialização em docência universitária, compostos de disciplinas relacionadas ao processo pedagógico e relação professor-aluno, entre outros temas.
Norma Viapiana ressalta que uma metodologia que tem dado resultados positivos em termos de aprendizagem é a do ensino estruturado: o planejamento antecipado de atividades de aprendizagem acompanhadas de indicações de leitura, de exercícios, vídeos, filmes ou outros recursos e disponibilizados aos estudantes antecipadamente: “Isso muda o foco do ensino para a aprendizagem e do professor para o aluno, ao mesmo tempo que torna ambos agentes do processo de formação”.
Para Masetto, no entanto, ainda vivemos a cultura do professor da época do império, como detentor de todo o conhecimento. “Hoje a transmissão de informação é o que menos interessa, para isso aí estão os meios de comunicação e a internet, que não substituem o professor como mediador. A característica fundamental da docência hoje está em planejar situações de aprendizagem que conjuguem a vivência na universidade, no mercado de trabalho e no mundo virtual. Aprender não é só adquirir informação, é construir conhecimento e saber aplicá-lo na vida”, diz.
Sendo assim, a valorização e o aumento da procura pela carreira de professor passam por sua adaptação às novas formas de aprendizagem e comunicação. O docente, muito além de um simples transmissor, é hoje responsável pela filtragem de informações, por sua articulação com o conhecimento, pela motivação dos alunos e por seu engajamento ético e cidadão.
Incentivo à docência |
A partir de 2007, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) assumiu também a missão de induzir e fomentar formação inicial e continuada de profissionais de magistério, bem como de estimular a valorização da profissão em todos os níveis. Assim, surgiram ações de incentivo como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), o Observatório da Educação, o Programa de Consolidação das Licenciaturas (Prodocência) e o Plano Nacional de Formação dos Professores (Parfor). A mais nova ferramenta do governo federal para incentivar a formação de docentes e pesquisadores é o programa Quero ser professor, quero ser cientista, que pretende despertar vocações em áreas como matemática, química, física e biologia. Bolsas de iniciação júnior, no valor de R$ 150, promoverão a participação dos estudantes do ensino médio e dos anos finais do ensino fundamental da rede pública em atividades de monitoria, pesquisa cientifica e tecnológica. Inicialmente serão 40 mil bolsas, mas a meta é envolver 100 mil estudantes. A Capes vai oferecer outras 30 mil, com início previsto para este ano. O investimento inicial será de R$ 54 milhões só em 2014. |
Apoio na EAD |
Conforme dados do Censo da Educação Superior, em 2012 o Brasil atingiu pela primeira vez a marca de um milhão de matrículas na graduação a distância. Na contramão do ensino presencial, o crescimento da EAD é apoiado pelas licenciaturas, que dão conta de 40,4% do total de alunos. Resta saber se a modalidade é a mais recomendada para suprir as faltas na docência. Cristina Barelli, do Instituto Singularidades, pondera que a EAD pode contemplar lugares que têm a necessidade de formação, mas não contam com cursos à disposição. No entanto, a especialista alerta que é preciso repensar as mudanças de paradigma em razão do acesso à tecnologia. “Muitos cursos apenas transpõem as práticas do ensino presencial, o que acaba formando o profissional de forma muito solitária. A troca e a colaboração são aspectos necessários na formação. A EAD precisa entender essas ferramentas para que a construção de conhecimento se dê de forma interativa.” Cristina afirma que os profissionais que trabalham na EAD têm papel muito importante nessa formação, pois são os tutores que provocam a aprendizagem, promovem fóruns e sintetizam os diferentes conteúdos. “Partindo-se do princípio de que a ação docente é, antes de tudo, uma ação interpessoal, a formação inicial do professor precisa ser presencial”, argumenta o professor Júlio Furtado, que defende a utilização da modalidade para a formação continuada. O processo de formação continuada em serviço pode ser potencializado através da EAD, em especial no aprimoramento da competência de mediação didática. A modalidade pode, assim, se tornar um meio de trocas entre os professores, caminho para o aprimoramento da prática docente. |