NOTÍCIA

Edição 219

Cultura do movimento

Antes sinônimo de bola e esportes coletivos, as aulas de educação física no Brasil se abrem para práticas corporais diversas, sem privilegiar os mais rápidos e mais fortes, mas incentivando um olhar crítico sobre o entorno dos alunos

Publicado em 08/07/2015

por Gabriel Jareta

© Getty Images
Na escola, há pressão para que se invista no discurso da saúde, ou do combate ao sedentarismo. Mas, nas diretrizes atuais, a educação física está inserida na área de linguagens

A algazarra dos alunos na hora do intervalo na Escola Municipal de Ensino Fundamental Virginia Camargo, em São Mateus, zona leste de São Paulo, costumava chamar a atenção da professora de educação física Aline Nascimento. Em grupos, os estudantes gritavam e brincavam com algo que produzia um som estranho, amplificado pela cobertura do pátio. Ao redor, outros grupos faziam confusão em torno de um monte de figurinhas – que, depois, a professora descobriu se chamarem “cards”. O objeto de som estranho, ela também descobriu, eram pequenos skates de dedo (ou “fingerboards”), uma prancha em miniatura com minúsculas rodinhas que reproduz movimentos do skate real, inclusive as manobras elaboradas e a travessia de obstáculos. Mas o que mais chamava a atenção de Aline era o fato de que os alunos escondiam os miniskates e os cards quando viam algum professor ou inspetor se aproximar, como se brincar com esses objetos fosse “errado” ou proibido na escola.

É bem possível que em muitas escolas realmente eles não sejam permitidos, mas na Emef onde trabalha Aline essas brincadeiras passaram a ser levadas a sério como tema de estudo. E isso se deve em muito a uma nova abordagem em relação à educação física na escola, em que os objetivos culturais se sobrepõem à ideia de uma aula voltada para promover a saúde ou estimular a competição com esportes coletivos – a maneira como a disciplina foi historicamente estabelecida nas escolas de Educação Básica. “Mediante contribuições da sociologia, antropologia, história, filosofia, política, semiótica e, mais recentemente, dos estudos culturais, a antiga preocupação com a aprendizagem dos movimentos foi substituída pela tematização da cultura corporal. De forma bastante sintética, a cultura corporal é uma parcela da cultura mais ampla que abarca todos os conhecimentos e representações relativos às práticas corporais”, escreve o professor Marcos Garcia Neira, coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar, da Faculdade de Educação da USP, e um dos principais especialistas da abordagem cultural da educação física no Brasil. O trecho faz parte do livro Práticas corporais: brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas (Ed. Melhoramentos).

Diante dessa concepção de aula, a proposta de Aline, ex-atleta bolsista e há três anos na rede municipal, foi “tematizar” o skate de dedo na sua sala de 6ª série, como resultado de um mapeamento das práticas corporais dos alunos ao redor de suas casas e em seus bairros. A atividade, realizada em 2013, foi relatada no grupo de pesquisas da USP, do qual ela faz parte. A adesão dos alunos, como ela imaginava, não foi tão simples, apesar da empolgação inicial. “Alguns meninos acharam uma brincadeira muito infantil, enquanto outras meninas acharam muito difícil”, lembra. Mesmo assim, as contribuições vieram de quase todos os alunos. Um deles, considerado indisciplinado e desinteressado, se prontificou a trazer miniskates de casa e ensinar os movimentos. Já uma menina revelou – para surpresa dos colegas – que praticava skate em algumas pistas próximas à escola e poderia também mostrar algumas manobras, já que participava de competições tanto de skate tradicional quanto de skate de dedo. “Em outro momento, esses alunos não teriam voz”, observa a professora. “Essa abordagem permite a possibilidade de trabalhar com o outro, e ela sempre surge a partir de alguma coisa.”

Na prática, as aulas de educação física com o skate de dedo não consistiam apenas em tentar fazer os movimentos. Os alunos fotografavam e filmavam as manobras, tentavam descobrir qual o nome de cada uma delas, assistiam a vídeos sobre o assunto e até mesmo confeccionaram pistas e obstáculos usando papelão. Um aluno da 7ª série foi convidado a dar uma “palestra” sobre o assunto e os estudantes discutiam a fundo as diferenças entre “esporte” e “brincadeira”, e se realmente havia preconceito em relação ao skate de dedo – afinal, era coisa de criança? Por que as escolas proíbem o skate de dedo no seu espaço? Skate é coisa de “maloqueiro”? Ou seja, por meio da prática corporal, os alunos passam a refletir sobre questões naturalizadas.

Expressão da sociedade

“O que a sociedade escolhe para colocar no currículo?”, questiona o professor Marcos Neira. “O que a sociedade pensa hoje, de modo geral, é formar um sujeito dinâmico e empreendedor. Para isso, ela quer mais aulas de informática ou mais aulas de educação física? Mais informática ou mais arte? Em outros momentos, a escola ensinou o que não ensina hoje”, diz. A própria origem das aulas de educação física no Brasil se prestava a um propósito diferente do atual. Influenciada pela ginástica alemã das décadas de 1920 e 1930, a disciplina da educação física por várias décadas teve como objetivo formar um corpo higiênico, combatente e vencedor.

 

© Gustavo Morita
Os alunos da professora Aline estudam as brincadeiras regionais da Bolívia

 

Ao longo da história, a educação física também sofreu algumas transformações influenciadas pelo modelo de sociedade. Durante a ditadura militar, mais especificamente no início dos anos 1970, a disciplina se voltou à competição e à busca pela formação de atletas e estabeleceu a separação de turmas por sexo. O ensino esportivo tornou-se hegemônico e alguns reflexos perduram até os dias atuais. “Desde a educação infantil, as práticas corporais aparecem na sociedade como competição”, aponta Neira.

Para o especialista, preparar as crianças e os jovens para competição não é papel da educação física na escola, mas das escolinhas de esportes e das academias. “Por trás do estímulo à competição está a formação de um tipo de sujeito para quem é importante saltar bem ou jogar bem. E os outros, há espaço para eles?”, analisa Neira. A abordagem cultural da educação física deve promover uma reflexão sobre a competição – trabalhar com tabelas de campeonatos, regras e contagem de pontos, por exemplo – e tematizar atividades além da mera competição de esportes coletivos, como a compreensão da dança ou do MMA.

Aplicação prática

A dificuldade em estabelecer a função da educação física dentro do currículo escolar – e até fazer com que a escola, os outros professores e mesmo os pais entendam sua importância – é também resultado de uma concepção de que ela não é importante ou não tem uma “aplicação” para o futuro da criança. “A educação física vive um momento contraditório”, afirma Amparo Villa Cupolillo, professora do Instituto de Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Segundo ela, existe uma disputa antiga na formação de professores entre o campo da saúde e o campo da educação. Isso faz com que, muitas vezes, o aluno formado em um curso de educação física prefira partir para as academias e deixe a escola de lado. “Nós defendemos uma formação integral, com visão mais ampla e que permita ao aluno trabalhar tanto na escola quanto numa academia”, diz.

© Gustavo Morita
A professora Aline Nascimento: brincadeira das crianças virou tema para a sala de aula

Além disso, observa Amparo, a formação de professores da área é também alvo de um “desprestígio imenso” que atinge as licenciaturas como um todo no Brasil. Situação que é agravada pelo fato de a educação física não ser uma matéria teórica ou “de conteúdo” no currículo da Educação Básica. “Há uma perspectiva de que o que importa na escola é o que cai no vestibular ou o que garante a empregabilidade”, afirma.

De acordo com o professor Neira, da USP, a educação física na escola também se vê rodeada por uma concepção de que as aulas teriam a função de combater a obesidade ou o sedentarismo, prevenindo doenças. “Há uma pressão para que se reinsira o discurso da saúde nas aulas”, observa. Isso vai de encontro ao que dizem, por exemplo, os documentos oficiais. A educação física hoje está inserida na área de linguagens e códigos e suas tecnologias (assim como a arte e as línguas), e é composta por esportes, danças, jogos, lutas e ginásticas. “A ideia é que o aluno saia do ensino médio com a compreensão do que é o futebol ou a dança; não é apenas ””ensinar”” uma modalidade”, diz.

Hegemonia esportiva

Em meio ao desprestígio da licenciatura e aos diferentes discursos sobre a “função” da educação física na escola, os professores de educação física no Brasil precisam saber lidar com a presença hegemônica dos esportes coletivos no ambiente escolar, como uma consequência natural da preferência dos brasileiros pelo futebol e, num segundo lugar muito distante, o vôlei. O reflexo disso na escola é a visão clássica do professor “rola bola”, aquele que segue a antiga fórmula de futebol para os meninos e vôlei para as meninas, e cuja função dentro do quadro docente é organizar os torneios interclasses. “A voz do professor de educação física era muito pouco importante do ponto de vista pedagógico”, diz Rubens Gurgel, professor da Faculdade de Educação Física de Sorocaba (Fefiso) e ex-professor de educação física da rede estadual de São Paulo.

De acordo com Gurgel, a concepção de educação física dentro da escola passa por avanços e começa a se abrir para uma abordagem contemporânea, mas ainda é uma área de conflito entre professores de visões distintas convivendo na mesma instituição. “Ainda há o professor que dá o futebol na quadra e deixa aqueles que não participam ficarem na arquibancada mexendo no WhatsApp”, diz. Para a linha de atuação de Gurgel, no entanto, a função da educação física é “alfabetizar” o aluno na cultura corporal, não muito diferente de como um professor de português alfabetiza o aluno na língua. A própria Lei de Diretrizes e Bases de 1996, lembra o professor, já elevou o status da educação física para uma disciplina integrada ao projeto pedagógico da escola. “É possível trabalhar do funk ao badminton com os alunos, mas sempre tematizando as atividades”, diz.

Segundo o professor, os grandes eventos esportivos sediados no Brasil – a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 – podem dar oportunidades práticas para aplicar essa nova abordagem da educação física. Durante a Copa, por exemplo, Gurgel conta que muitos professores decidiram abordar o evento de maneira um pouco diferente do tradicional. “Um grande número já tentou uma abordagem mais crítica sobre a Copa, não ficou só nos interclasses com o nome dos países. Em um momento anterior essas discussões ficavam restritas ao âmbito acadêmico”, observa Gurgel. Antes da Copa, o grupo de pesquisas do professor Marcos Neira, da USP, promoveu um programa de formação para professores chamado “Olhares e análises para a Copa do Mundo”, justamente para discutir os aspectos mais polêmicos da competição – como os gastos excessivos e os protestos populares pelo país.

Bola na prática

© Gustavo Morita
Professor Leandro de Souza: a Copa do Mundo rendeu pesquisas sobre o futebol, mas também sobre questões como o preço dos ingressos

A Copa foi também o pretexto para um plano de aula desenvolvido pelo professor de educação física Leandro Rodrigo Santos de Souza, da Escola Estadual Heidi Alves Lazzarini, no Capão Redondo, em São Paulo. No primeiro semestre de 2014, o professor desenvolveu com os alunos de turmas do 4º e 5º anos um projeto para trabalhar o futebol muito além do tradicional jogo sem muitas regras dos meninos na quadra. A ideia foi envolver também as meninas e trabalhar alguns conceitos e regras – sempre a partir da “investigação” junto às crianças e sem deixar de lado a aplicação prática dos movimentos na quadra. Isso envolvia questões básicas, como a diferença entre “passe” e “chute”, e a história de chegada do futebol ao Brasil até discussões sobre a modernização dos estádios e o preço dos ingressos.

No ano anterior, Souza já havia trabalhado com os alunos o futebol de rua. A principal motivação, relata, foi a constatação de que os estudantes não contam com espaços públicos disponíveis no bairro para a prática de esportes. “Há uma explicação para o fato de o aluno jogar bola na rua e não em um local adequado. Discutir isso na aula faz com que o aluno fique mais sensível a questões sociais e desenvolva o pensamento crítico”, diz. Como parte do projeto, o professor discutiu com os alunos as diferentes modalidades de futebol de rua (gol a gol, linha, 21) e suas regras informais, assim como quais objetos poderiam ser usados para substituir as traves e mesmo a bola.

A partir daí, os alunos (meninos e meninas) puderam “ressignificar” o jogo, praticando no estacionamento da escola ou na rampa de acesso com a supervisão do professor, e desenvolver táticas de jogo. Para Souza, a abordagem cultural foi capaz de dar novos significados a uma prática corporal desprezada como simples “brincadeira de moleque” na rua e despertar o interesse inclusive de quem não se via como um bom jogador. “De modo geral, há pouco investimento nas aulas de educação física. A escola olha para a aula apenas como um momento para os alunos gastarem energia, com pouco aperfeiçoamento”, lamenta o professor.

A experiência é semelhante à da professora Aline Nascimento, da Emef de São Mateus, com duas turmas de 4º e 5º anos. Depois de trabalhar com o skate de dedo, a “brincadeira” escolhida no primeiro semestre de 2015 foi a queimada. “Em geral, os alunos não estudam a queimada, era apenas um jogo de meninas na educação física. Hoje a queimada é para todos”, diz. A professora também trabalha com os alunos os conceitos do que é uma atividade “pré-desportiva” e o que é um esporte, assim como as regras da queimada em outros países.

Para as aulas, a professora também apresentou o filme Com a bola toda, uma comédia americana de 2004 que narra as aventuras de um time de “dodgeball” (como a queimada é chamada nos EUA, onde é praticada profissionalmente, com federação e campeonatos). “Outra coisa interessante é que todo time deve ter uma mulher, então isso abriu muito espaço para discussão”, diz Aline. Os alunos relacionaram, por exemplo, a diferença entre a força e a habilidade de meninos e meninas com papéis de gênero trocados, como no filme brasileiro Se eu fosse você. “A queimada tem tantos elementos e significados que é injusto tratá-la apenas como um pré-desportivo”, afirma.

Resistência

Embora grupos de pesquisa como o da USP estimulem a formação de professores alinhados a uma abordagem contemporânea da educação física, grande parte dos currículos ainda opta por manter a estrutura tradicional, privilegiando o ensino de modalidades esportivas, como era comum em décadas anteriores. E, hoje em dia, são fortemente influenciados pela cultura “fitness” e de formação de professores para academias de ginástica.

Uma das exceções é a licenciatura em educação física da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, que desenvolveu um currículo considerado “de resistência” entre especialistas da área.

“O nosso curso tem um projeto pedagógico que não ignora essas tendências naturais, mas procura contemplar uma outra educação física: uma educação física que faça com que as crianças gostem e não fujam dela. É uma educação física voltada para todo mundo e não apenas para os bem-dotados em qualidade técnica e qualidade física”, afirma Paulo Antonio Cresciulo de Almeida, coordenador do curso da UFF. A estruturação do currículo foi discutida por quase uma década, e o curso, iniciado em 2007, hoje oferece 30 vagas a cada processo seletivo.

Na prática, essa educação física “para todos” funciona da seguinte maneira: não há aulas como “Basquete 1” e “Basquete 2”, por exemplo, com os fundamentos do esporte e suas técnicas, mas sim “Esportes e Jogo 1”, que contemplam todas as atividades com os pés, como futebol, futsal e futevôlei. “O professor procura mostrar aos alunos como ensinar essas modalidades através de jogos, brincadeiras e recreação, onde todo mundo esteja incluído”, explica Almeida. A disciplina de “Esporte e Jogo 2” aborda modalidades que usam as mãos, a “3” trata dos esportes não convencionais, como badminton e rúgbi, e a “4” abrange movimentos que se aproximam do atletismo e dos saltos.

© Gustavo Morita
Estudante treina movimentos de ginástica olímpica: variedade de modalidades para combater a cultura hegemônica dos esportes com bola

A disciplina “Lutas”, por sua vez, não trata especificamente de modalidades como judô ou tae-kwon-do, mas de princípios de ataque, defesa e imobilização. “Não trabalhamos com a técnica pela técnica, mas com a lógica das lutas: embora elas tenham técnicas e regras diferentes, o objetivo é sempre o mesmo”, diz o coordenador. Outra preocupação é tornar as aulas na universidade mais próximas da realidade que os futuros professores vão encontrar nas redes públicas de ensino, com o mínimo possível de bolas e pouca infraestrutura, além de incentivo ao resgate de manifestações culturais e folclore.

Ainda assim, há disciplinas como fisiologia e prescrição de exercícios, voltadas para quem vai seguir as carreiras do bacharelado, como personal trainer ou professor de academia. “Nós entendemos que o ato pedagógico se dá em qualquer espaço onde há professor e aluno, não fazemos a diferenciação entre o bacharel e o licenciado, ainda que o conselho (profissional de educação física) não reconheça a legitimidade desse trabalho”, afirma Almeida. Hoje, diz o coordenador, há três tipos principais de egressos: o professor da rede pública, o “fitness” (que precisa complementar a formação com um bacharelado para fins legais) e aqueles que optam por seguir carreira acadêmica, inclusive com alguns ex-alunos que hoje também dão aulas na UFF. “O trabalho tem dificuldades de ser reconhecido por ser contra-hegemônico, mas nos enche de satisfação ter a convicção de que estamos contribuindo para uma educação física mais humana e mais justa”, conclui.

Autor

Gabriel Jareta


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