Há quem perceba que céu, inferno e pecado se misturam no mesmo pacotaço fantasioso das histórias da carochinha e do Jeca Tatu
Publicado em 10/09/2011
O mais preguiçoso dos personagens da literatura brasileira talvez seja o Jeca Tatu. Quando Monteiro Lobato (1882-1948) descreveu o caipira acocorado e aparentemente vadio, atribuiu a suposta preguiça do Jeca à desnutrição e aos vermes. Nem de longe se referiu à preguiça como um dos pecados capitais alinhados e descritos pela Igreja Católica. Para o catecismo, são eles: soberba, avareza, inveja, ira, impureza, gula e preguiça ou acídia.
Por que pecado capital? Capital, no caso, é adjetivo que significa principal, fundamental, fatal, mortal. Vem do latim caput, cabeça, parte superior, parte principal. Daí que pecados capitais são os fundamentais, matrizes de incontáveis outros.
Muita gente estranha que a preguiça, freqüentemente tratada como vício quase pitoresco, seja classificada como pecado capital. No caso de Jeca Tatu por certo não era; ele não passava de um matuto bichado e inocente.
A acídia, sim, considerada sinônimo de preguiça pelo Houaiss, é apontada pelo filósofo e teólogo Tomás de Aquino (1225-1274) como verdadeiro pecado capital. A acídia, ou acédia, é uma espécie de preguiça temperada pela morbidez. Tanto que Tomás não alinha a preguiça entre os pecados capitais, para ele os seguintes: vaidade, avareza, inveja, ira, luxúria, gula e acídia. Convém lembrar que a filosofia de Tomás foi adotada como pensamento oficial da Igreja Católica.
Interessado no assunto, Jean Lauand, professor da Faculdade de Educação da USP, publicou o estudo “O Pecado Capital da Acídia na Análise de Tomás de Aquino”, no livro Sete Conferências sobre Tomás de Aquino (Editora da Escola Superior de Direito Constitucional). Nele, lembra que a preguiça é sentida ou notada hoje como um pecadilho, desculpável em alguns casos.
A bonomia da preguiça brasileira parece bem distante do pecado da acídia:
“A acídia é coisa séria, como se vê se anteciparmos desde já uma primeira aproximação da definição de acídia: a tristeza pelo bem espiritual; a acidez, a queimadura interior do homem que recusa os bens do espírito. Desde sempre e, durante muitos séculos, essa tristeza foi considerada pecado capital. Modernamente, porém, e não por acaso, houve um esquecimento da acídia e sua substituição pela preguiça”, diz Lauand, que se baseia nas considerações do filósofo alemão Josef Pieper (1904-1997) para acentuar que não há conceito ético mais desvirtuado, mais aburguesado na consciência cristã, do que o de acídia.
Talvez seja por isso que o catecismo alinha a acídia apenas como alternativa de preguiça. A acídia está lá, mas aparentemente como coadjuvante. O que vale para a maioria dos fiéis é a preguiça. É claro que tal maioria ignora conceito tão complexo expresso por palavra tão rara, de forma que a maioria se contenta com a noção de preguiça, vício mais palatável, que não parece ser tão capital assim, a ponto de levar a vítima para os braços escamosos do Capeta. Por isso, quase todos os fiéis ou nem tanto ignoram a advertência de Tomás de Aquino:
“Como já dissemos, vício capital é aquele do qual naturalmente procedem – a título de finalidade – outros vícios. E assim como os homens fazem muitas coisas por causa do prazer – para obtê-lo ou movidos pelo impulso do prazer – assim também fazem muitas coisas por causa da tristeza: para evitá-la ou arrastados pelo peso da tristeza. E esse tipo de tristeza, a acídia, é convenientemente situado como vício capital”.
Aquino enxerga nesse pecado duas faces: a da inatividade, que conflui para a preguiça de traços mórbidos, e a da atividade excessiva, desenfreada, útil para o estudo do comportamento do homem atual. Melhor limitar a análise ao sentido passivo da acídia/preguiça, marcada pela tristeza, “um pecado em si mesma”.
Na educação, importa é saber que não raro outros males se confundem com a preguiça. Males como a desnutrição bichada do Jeca Tatu na escola pública, a tendência à depressão e outros distúrbios físicos e psíquicos, principalmente na escola privada, mas não só nela. É o que se pode depreender com alguma audácia dos estudos de Lauand sobre a tristeza da acídia, para além do interesse teológico.
Por que a preguiça, ou, vá lá, a acídia, seria pecado? Por que seriam pecados a apatia, a abulia, a melancolia e o desinteresse pelas coisas da vida que passa?
Não deve haver muitas pessoas capazes de se comprazer com os resultados da própria preguiça ou o cultivo da tristeza depressiva. Nem com as oscilações angustiantes do distúrbio bipolar. Fora da esfera religiosa, será mais produtivo encarar tais aflições como transtornos físicos ou mentais, tratáveis com medicamentos.
Há pessoas capazes de perceber que céu, inferno e pecado se misturam no mesmo pacotaço fantasioso das histórias da carochinha e do Jeca Tatu. Elas sabem que quase sempre os males tipificados como preguiça ou acídia podem e devem ser estudados, compreendidos e tratados com orientação especializada e tratamento médico. Nada das desagradáveis e muito quentes penas do inferno aplicadas pelo Demo ou Príncipe das Trevas.
Claro que a preguiça e a complexa acídia podem se manifestar entre alunos e professores. A preguiça ou alguns de seus filhotes surgem como reflexo do desinteresse ou incapacidade do professor de dar aulas criativas, alegres, ligadas às preocupações dos alunos. Ou podem ser representadas pela acomodação de repetir e repetir o que já disse automaticamente, com apatia indisfarçável.
Dura é a vida de professor, mas, se ele não conseguir neutralizar a atração quase insuperável da TV, dos jogos eletrônicos, da internet e dos hormônios em ebulição, seus alunos, ou parte deles, dominados pela apatia ou a resistência, talvez sejam confundidos com preguiçosos ou acidiosos. Pode ser que o sejam, e precisam ser estimulados. Mas a preguiça também poderá ser do professor, que talvez não saiba dar vida, movimento e alegria às aulas. Pelo menos parte da preguiça será dele, como diriam alguns sábios, Paulo Freire à frente.
Em tais casos, a preguiça jamais se confundirá com o ócio, menos ainda com O Ócio Criativo, do sociólogo italiano Domenico Di Mais (Editora Sextante), que aponta a escola como fonte de tristeza. “Se a escola parar de educar só para o trabalho e educar para a vida, automaticamente se tornará uma escola feliz.”
Falar é fácil. Fácil ou difícil, com ou sem pecado, fora com a diabólica preguiça. Tudo para evitar a avaliação ruim, o risco do desemprego e a falência da educação. E que não seja por medo do Belzebu, também conhecido como Rabudo, Tinhoso ou Aquele que Nunca Ri, o Supremo Preguiçoso: a toda hora caem nos braços dele pencas de pecadores sem que ele faça nenhum esforço.
Um horror.