O alunado desviante e o cientificismo psicologizante
Publicado em 10/09/2011
Quando chega moleque de outra unidade, (…) os cara dá um psicológico. (…) Você joga um verde no cara. (…) Daí, se o cara ficar com medo, assim, ficar com uma cara de assustado, é porque alguma coisa ele tem, ele é. (…) Nós vai conversando, trocando uma idéia, tipo jogando uma idéia nele, (…) vai fazendo ele se condenar com as idéias dele.
O relato acima consta da excelente dissertação de mestrado de Natália Noguchi sobre a Febem-SP, junto ao Instituto de Psicologia da USP. O depoente, um dos jovens internos, descreve aqui uma das provas de fogo por qual passam os novatos que ali chegam. Caso suplantem-na, ganharão o direito de pertença, afiliando-se ao rígido código de conduta instituído pelos próprios internos. E logo se converterão em algozes daqueles outros que sucumbiram ante o ritual de iniciação. Estes viverão sob constante tensão, provando o fardo da segregação e da violência.
A atmosfera de intimidação ali presente guarda pouca distância daquela que se obtém quando, nas escolas regulares, se diagnosticam entre os alunos "problemas psicológicos" – essa enigmática expressão evocada aos quatro ventos e, via de regra, em situações de negligência pedagógica.
Sua fórmula é velha conhecida: mediante qualquer tipo de evento desestabilizador dos padrões normativos, recorre-se ao escrutínio não das variáveis institucionais que o precipitaram, mas da índole psicológica dos implicados. A tática do inquérito confessional é infalível: troca-se uma idéia, joga-se um verde, força-se o outro a se condenar, descobre-se o que ele tem.
A lógica do descrédito de véspera que embasa tal investida tem sua tradução escolar na adesão indiscriminada ao cientificismo psicologizante, o qual decreta a irredutibilidade de determinados pré-requisitos (orgânicos, cognitivos, afetivos, morais, sociais etc.) para o bom termo do trabalho escolar. Sem eles, a resolutividade pedagógica encontraria seu grau zero e o alunado desviante, seu desterro educativo.
Aprendemos com os oniscientes psicólogos educacionais que o desenvolvimento humano é progressivo, gradual e cumulativo. Uma descontinuidade qualquer obstaculizaria, em maior ou menor grau, sua marcha natural. Sendo assim, o passado teria a função de ordenar o futuro e o presente, a missão de reparar o passado, se necessário for. Daí a ânsia contemporânea de inquirir histórias pessoais, desbaratar desordens recônditas, corrigir rotas alteradas. Uma ânsia psico-higienista, enfim.
Seu resultado é cortante: a estigmatização de um contingente crescente da infância e juventude em situação de vulnerabilidade; aqueles mesmos alunos com os quais não mais nos sentimos capazes de nos defrontar, mas que resistem apenas para nos assombrar. Ou melhor, para nos interpelar eticamente: "Queres ainda ensinar?".
Julio Groppa Aquino
Professor da Faculdade de Educação da USP
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