Ao mesmo tempo jornalístico e literário, o gênero baseia-se na subjetividade e na visão própria do mundo; exige estratégia de estilo para não ser confundido com outras formas textuais
Publicado em 10/09/2011
Rubem Braga (à direita) em meio à comissão julgadora de concurso de crônicas e contos em 1968, no Paraná: gênero difícil de definir |
O que é uma crônica? Praticamente todos os cronistas já usaram esse tema para fazer uma crônica. Ou até mais de uma. Acho que só perdem para os poetas, que vivem escrevendo poemas para conceituar a poesia. Muita gente acha que escrever uma crônica é coisa fácil, assim como muita gente que vê obras de pintores abstracionistas, dizem: "Ah! Isso, meu filho (de três anos) faz o tempo todo!"
Mas fazer uma crônica, sobretudo como os cronistas profissionais, que têm de produzir um texto diário ou semanal, com um nível aceitável, que os faça manter seus leitores até o dia ou a semana seguinte, não é nada fácil. Essa sensação de facilidade, em parte vem das próprias definições dos cronistas. Há uma, de Fernando Sabino, que é bem conhecida:
"Algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã."
Colabora para essa idéia de que é um gênero menor, como querem alguns críticos, a relação incestuosa com o jornalismo, pela sua efemeridade. A crônica é gênero feito para ser publicado em jornal ou revista. Ela só dura quando recolhida em livros. Mas nunca soube de cronista que escrevesse diretamente um livro de crônicas.
O cronista sempre escreve para o jornal ou a revista que lhe reserva um espaço determinado, quase sempre situado no mesmo lugar da publicação. Diz-se que isso provoca uma espécie de empatia, de hábito, com o leitor, que já sabe onde encontrar o cronista, assim como as palavras cruzadas ou os quadrinhos.
Diversão informativa
A crônica é vista, nos veículos que a publicam, como espaço de entretenimento, em meio ao monte de más notícias de um jornal ou revista. Um gênero jornalístico, mas misturado com literatura. Como o jornalista, o cronista tem como matéria-prima os fatos cotidianos, tendo até um certo dever de cultivar a notícia. A diferença está em que o jornalista vê as coisas com um grau maior ou menor de objetividade e o cronista, pelo contrário, usa a subjetividade, sua visão de mundo, filtrada por uma linguagem que engloba desde humor e ficção até fantasia e crítica.
Ela tem de ser curta, geralmente narrada em primeira pessoa, pois devido à tal subjetividade, o cronista bate um papo com o leitor – o crítico Antônio Cândido caracterizou-a como "uma conversa aparentemente banal", geralmente usando uma linguagem menos para o estilo literário que para o coloquial. Mais um item para o leitor se identificar com o autor, uma das qualidades da boa crônica, como as que resumimos a seguir.
Usar filtro interno
Depois desse cuidado de principiar bem (ou antes mesmo dele), confira se o acontecimento que você selecionou ao ler um jornal ou revista, ao ver a TV ou navegar pela internet, ao sair à rua, conversar com as pessoas, entrar em contato com a realidade que cerca você, avalie bem, antes de escrever, o que a fatia de vida selecionada provoca no seu íntimo, uma sensação de alegria, de tristeza, de entusiasmo, de horror, de indignação ou de felicidade. Aí, você escreverá sobre esse fato de acordo com seu ponto de vista pessoal.
Se você ler um punhado de crônicas de bons autores, verá que esse acontecimento pode ser um evento mínimo, ao qual ninguém prestou atenção, mas em que o cronista descobre singularidades, a beleza, o lirismo. Lembro por exemplo, de uma grande crônica de Rubem Braga, que tratava da perda de um caderninho. Mais uma vez Fernando Sabino: a crônica é "a perseguição do acidental".
Agarrar o leitor de cara
Como todo texto curto, para repetir mais uma vez, precisa agarrar o leitor de cara. Então, o começo da crônica tem de intrigar, surpreender ou divertir. Basta conferir alguns exemplos. Carlos Heitor Cony começa:
"Na Academia Brasileira de Letras há um salão muito bonito, mas um pouco sinistro."
Isso para falar do salão dos poetas românticos que, como se sabe, morreram muito cedo. E mais ainda, é de onde sai o enterro dos imortais, "porque a maioria deles não tem onde cair mortos (a piada é de Olavo Bilac)."
Luis Fernando Verissimo, opta pelo humor, claro:
"Nunca tive que passar pelo martírio do vestibular. É uma experiência que jamais vou ver, como a dor do parto."
Ou ainda, Walcyr Carrasco:
"Quando estava terminando o segundo grau, eu tinha dificuldade em ficar com alguém. Meus colegas viviam se apaixonando. Eu, sozinho."
Antepassados de um gênero
A crônica vem de um modelo francês que começou em 1799, no Journal de Débats parisiense; então, textos comentavam de modo crítico os acontecimentos do dia. Geralmente, as crônicas eram publicadas no rodapé dos jornais e foram assim trazidas para o Brasil do século 19, mas aqui se transformaram, ficaram mais leves no estilo, utilizando recursos expressivos da poesia e da ficção.
Machado de Assis brilhou como cronista, sobretudo usando seu humor acidamente crítico. Mas José de Alencar, Lima Barreto, João do Rio e Antonio de Alcântara Machado não ficaram atrás. Mais recentemente, Rachel de Queiroz, Marques Rebelo, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e outros foram os destaques do gênero. Hoje, os mais famosos são Luis Fernando Verissimo, Walcyr Carrasco, Manoel Carlos, Lourenço Diaféria, Ivan Ângelo.
Vale, ainda, mais uma citação de Sabino, numa obra-prima do gênero, que se chama exatamente A Última Crônica, em que ele surge sem ter sobre o que escrever:
"Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar para fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica."
Os três tipos de crônica
Os estudiosos costumam dividir as crônicas em três tipos. Um deles é o das crônicas líricas ou poéticas, cujo nome maior é Rubem Braga, insuperável para falar da borboleta que pousou na sua cobertura ou do sabiá que ouviu cantar. Mas outros há, como Antonio Maria, Carlos Drummond de Andrade ou Paulo Mendes Campos, que cultivaram esse tipo, assim como Clarice Lispector:
"Conheço em mim uma imagem muito boa, e cada vez que eu quero eu a tenho, e cada vez que ela vem ela aparece toda."
É uma crônica linda, em que Clarice imagina uma verde clareira que tem borboletas e um leão, um lugar de felicidade e paz.
O segundo tipo seria a crônica de humor, cujo maior autor foi Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, e hoje tem como nome mais conhecido Luis Fernando Verissimo. Uma terceira forma seria a da crônica-ensaio, com conteúdo crítico da realidade cultural, social e ideológica, como a maior parte das crônicas de Arnaldo Jabor, Cony e um naco das de Nelson Rodrigues, que mesclava o ensaio com ficção (veja-se A vida como ela é).