O exercício de comparação dos sentidos dados pelas diversas línguas a uma mesma realidade pode revelar as razões e os raciocínios mais íntimos de cada cultura
Publicado em 10/09/2011
A atual Babel mundial vive divórcio compulsório. Um efeito colateral da xenofobia de Bush, da crise de fronteiras na América, das hostilidades aos imigrantes na Europa e dos rancores do Oriente Médio é transformar as diferenças em chagas intoleráveis. Os estudos da linguagem mostram, no entanto, que há sempre uma forma generosa de encarar as diferenças com o outro. Em língua, o diferente talvez diga mais a nós quando assumimos uma conduta "acolhedora", de diálogo com outros idiomas.
Muito mais que construção verbal, toda língua carrega a experiência de uma nação. Essa é uma idéia central da lingüista argentina Ivonne Bordelois, no excelente A Palavra Ameaçada. Não haveria lei de tradução e validação entre idiomas que apagasse, diz Ivonne, algum resíduo particular, único, de cada linguagem. Há áreas inteiras do vocabulário em que as línguas afirmam a si mesmas e, colocadas em paralelo com a nossa, parecem completar-se tanto quanto confrontar-se conosco.
Se isso é verdade, ora falta a uma cultura palavra específica para uma idéia ou objeto, ora o sentido dado ao mesmo item da realidade se revela distinto ao estabelecido por outros povos. O mesmo objeto que nos protege da chuva (guarda-chuva) para outros povos faz sombra: umbrella vem do latim umbro (sombra), lembra Jean Lauand, colunista de Língua. Assim também se distingue, como diria Ivonne Bordelois, a nossa "mesa-de-cabeceira" da "mesa de luz" do espanhol e dos night-table, nacht-tische e table de nuit, a "mesa da noite" do inglês, do alemão e do francês, respectivamente. Onde Brasil e Portugal vêem um espaço de descanso e apoio, o espanhol vê a lâmpada e os outros, a escuridão do sono.
Confronto e carinho
Diferentemente do português, do espanhol, do inglês, do alemão e do francês, o russo só tem uma palavra para "dedo" e "dedo do pé". Como os outros idiomas, o russo é uma amostra grátis de um determinado olhar sobre o mundo. Num texto publicado há tempos pela revista Bravo, chamado Os Bons Estrangeirismos, o jornalista Sérgio Augusto lembrava, com inveja, de palavras estrangeiras de uso único, sem versão, que ele gostaria de ver popularizadas no Brasil. A palavra russa "razbliuto" era uma delas. Nomeia o sentimento carinhoso que temos por quem já não amamos.
Haveria um termo indígena da Terra do Fogo, continua Sérgio Augusto, chamado mamihlapinatapei, para nomear aquele olho no olho hesitante, em que cada parceiro espera que o outro tome a iniciativa, mas nenhum tem coragem de dar o primeiro passo. Da mesma região, Ivonne Bordelois lembra que os habitantes anteriores à chegada dos europeus à Argentina, os yamanas (ou yahgans), tinham outra peculiaridade lingüística: não conheciam o verbo "morrer". Para eles, os homens se perdem e os animais se quebram.
Cores do arco-íris
Cada povo acessa a realidade de sua maneira e com lógica própria. Em Sons e Sinais da Linguagem Universal (editora Coordenada, 1972), o russo A. Kondratov pergunta quantas cores tem o arco-íris. Sete, diremos. Mas na língua de uma tribo africana da Libéria, afirma ele, as sete cores do arco-íris são designadas por só duas palavras, que correspondem às cores "quentes" (vermelho, laranja, amarelo) e "frias" (violeta, anil, azul, verde).
Uma cor não é a mesma em toda linguagem. Os celtas não distinguiam a diferença entre o verde e o azul. Para designar o verde, o azul escuro, o azul claro, o cinza e o marrom, a língua galesa só tem três palavras, diz Kondratov: gwyrrd (verde), glas (para cinza claro, azul escuro, azul claro e verde) e lwyd (castanho e cinza escuro). O mesmo fenômeno varia de rótulo conforme o país.
Ivonne Bordelois lembra que o inglês "toma" fotos (to take a picture); mas no espanhol "se sacam" e no português "tiram-se" fotografias, como se esses idiomas chamassem atenção ao ato invasivo inerente ao uso de uma câmera, que nos "arranca" imagens.
Do mesmo modo, em português nós sonhamos com alguém, como se acompanhando a cena ou a pessoa. O inglês, mais distante e individualista, sonha a respeito de alguém (to dream of). Pensamos em algo ou alguém, como se mergulhássemos nele. O idioma de Bush pensa sobre (thinks of), uma atitude muito mais desconfiada diante do desconhecido, como se tudo lhe fosse de antemão estranho. O cuidado com o outro pode não ser, afinal, uma premissa anglo-saxônica, a pesar apenas o idioma. O povo de língua inglesa, é bom lembrar, introduz um amigo (introduce), larga-o entre desconhecidos, enquanto nós o "apresentamos" (oferecemos, presenteamos): o que é meu, é seu também.
Exuberâncias
As lacunas de uma cultura alertam para a exuberância lingüística de outra. O inglês tem serendipity (talento para fazer por acidente descobertas afortunadas). Mas nós temos "carinho", que não é igual a affection.
O russo divide as 24 horas de um dia em "manhã, "dia", "tarde" e "noite". Não há paralelos em português ou espanhol para a distinção anglo-saxônica entre afternoon e evening, mas o inglês não tem nada que ocupe o lugar da nossa distinção para "amanhecer", "entardecer" e "anoitecer".
O inglês não tem equivalente para o verbo "calar". Eles "permanecem em silêncio" (to keep silent) ou mandam "fechar o bico" (shut up). Nenhum dos casos se encaixa bem na idéia que fazemos de "calar": no primeiro, o ato de calar é um pressuposto (permanece o que já estava calado), enquanto no segundo é uma ordem violenta (nem sempre calamos porque nos mandaram).
O diálogo entre línguas é uma forma de estrangeirismo às avessas.