Adjetivos não devem ser rejeitados, mas substituí-los num texto por uma indicação concreta é sinal de competência literária
Publicado em 10/09/2011
Por que todo Manual de Estilo nos aconselha a eliminar adjetivos? E por que achamos tão difícil obedecer? Um adjetivo é útil porque é um atalho, uma simplificação de um processo, um recurso que economiza esforço mental. É uma informação que o autor entrega ao leitor para absorção instantânea, poupando este do trabalho de pensar. O autor preguiçoso escreve: "Fulano de Tal era um funcionário honesto, esforçado, mas pouco imaginativo". Esses adjetivos lhe poupam o trabalho de demonstrar concretamente qualidades abstratas. E o leitor preguiçoso aceita essas conclusões porque elas o livram de acompanhar uma demonstração e tirar conclusões próprias.
Há um princípio estilístico segundo o qual é preciso "mostrar, em vez de apenas dizer". Em vez de informar ao leitor alguma coisa a respeito de um personagem ou situação, é preferível fornecer pistas para que ele deduza a informação. Se ele o consegue, esta pequena descoberta cria uma parceria entre autor e leitor. O leitor murmura "ah, sim, entendi", e dá uma piscadela cúmplice para o autor.
"Felisberto abriu a porta e deparou com um homem de aparência pobre." Se Felisberto chegou num relance à conclusão de que o outro era pobre, talvez fosse melhor registrar o que Felisberto viu e permitir que o leitor refizesse seu raciocínio. Se dizemos: "Felisberto abriu a porta e deparou com um homem vestindo um terno cheio de remendos e calçando sapatos surrados", aí sim, nossa conclusão pode ser parecida com a de Felisberto.
Concretude
A maioria das descrições de características físicas pode ser enriquecida pelo método indireto de exposição. "Antônio espremeu-se para dentro do carro e o banco afundou sob seu peso" é melhor do que "Antônio, um sujeito corpulento, entrou no carro". Em vez de dizer "uma bela loura de vestido preto cruzou o saguão" pode-se dizer "uma loura de vestido preto cruzou o saguão, atraindo os olhares masculinos à sua passagem". Ou algo assim.
Há sempre uma maneira concreta de mostrar algo em vez de apenas usar um adjetivo. "O chão estava úmido" é mais vago do que "o chão mostrava poças formadas pela chuva da véspera". Nestes casos, é melhor uma imagem visual complexa, mesmo que de maior extensão. Parece uma perda, uma prolixidade desnecessária; mas um escritor decide o tempo inteiro, intuitivamente, o que funciona melhor em cada frase. Às vezes, é melhor a concisão abstrata de um adjetivo para ganhar tempo. Às vezes, é preferível a descrição concreta, porém mais longa, daquilo que ele quer transmitir.
Adjetivos que exprimem estados emocionais podem, em geral, ser substituídos por uma descrição de ação ou comportamento. "Fulano levantou-se furioso e saiu da sala" pode virar "Fulano levantou-se empurrando a cadeira para trás e saiu da sala sem uma palavra, batendo a porta com força". O primeiro exemplo é uma simples frase. O segundo equivale a uma imagem.
Incomum
Há em alguns autores a tentação da adjetivação incomum, inesperada. Um adjetivo pode ganhar expressividade quando é usado de maneira, à primeira vista, imprópria, mas que lhe dá um sentido metafórico. "Ela o fitou com olhos ínfimos." "Fulano sentiu-se com a mente despetalada." "As cortinas do teatro se abriram, ambiciosas." "Ele tinha um olhar pegajoso." "Maria vivia num apartamento com dois gatos faraônicos." "Ao sair, encontrou no corredor um sujeito de crânio liso e óculos blindados." Quais dessas adjetivações funcionam? Difícil saber. Expressões assim estão no limite entre o incomum e o ridículo. "As Ruínas Circulares", conto de Jorge Luís Borges, começa com a frase: "Ninguém o viu desembarcar na noite unânime". Borges comentou certa vez: "Isto mostra apenas como naquele tempo eu escrevia de maneira irresponsável".
Se um substantivo deve vir acompanhado de mais de um adjetivo, é melhor que estes cubram áreas totalmente diversas e que um se refira a uma característica física e outro a uma característica de temperamento. "Era um sujeito gordo e impaciente" é uma descrição mais breve e mais rica do que "era um sujeito alto e gordo" ou "era um sujeito falador e impaciente".
Deve-se evitar a todo custo o adjetivo grudado a um uso específico, um vício da imprensa: "tórrido romance", "carreira meteórica", "discurso inflamado", "sol abrasador", "corpo escultural"etc. Clichês assim são como baratas, impossíveis de extinguir, mas podemos mantê-los a distância.
Falta de critério
Quando utilizado sem critério, o adjetivo se torna uma moeda sem lastro, um cheque sem fundos cujo valor nominal não corresponde a um valor concreto. Esse valor só existe quando o autor do texto produz uma impressão de realidade compartilhada pelo leitor, recriada por este na leitura. Quando escrevemos: "A sala estava desarrumada", é como se estivéssemos impedindo o leitor de entrar na sala e constatar por si mesmo, sendo obrigado a acreditar na nossa palavra e aceitar nosso julgamento. Se, por outro lado, escrevemos: "Na sala viam-se copos sujos sobre os móveis, cinzeiros cheios, peças de roupa espalhadas pelo chão", é como se autor e leitor estivessem vendo o mesmo quadro, ao mesmo tempo, e talvez chegando juntos à mesma conclusão.
Os adjetivos não devem ser proscritos, mas é preciso saber quando usá-los, pois não são sinal de concisão. Na maioria dos casos é sinal de preguiça de quem quer resolver rapidamente um problema criativo complexo. Substituir um adjetivo (ou um advérbio, ao qual se aplica quase tudo dito aqui) por uma indicação concreta a ser interpretada pelo leitor é um pequeno teste de competência literária.
Braulio Tavares
é compositor, autor de Contando histórias em versos (Editora 34, 2005).
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