São os alunos desviantes, infames, aqueles que oferecem suporte e lastro para o gesto docente
Publicado em 10/09/2011
Ei, professor é um compêndio de memórias iniciado com outro livro, As Cinzas de Ângela, que angariou o prêmio Pulitzer e foi convertido em roteiro cinematográfico. Nele, é narrada sua infância paupérrima na Irlanda dos anos 30. Agora McCourt focaliza sua trajetória docente nos Estados Unidos entre as décadas de 60 e 80.
Justiça seja feita, Ei, professor não é uma obra magna da literatura universal. No entanto, sua virtude maior é a de dar voz à exuberância dos tipos humanos que desfilam nas salas de aula, seus trejeitos, suas manias, seus truques. Isso porque apenas as atitudes insólitas que os alunos "difíceis" são capazes de ter são aquelas que perduram na memória. São os alunos desviantes, os trapaceiros, os fora-da-ordem que resistem à oxidação do tempo. Todo o resto é nada.
Trata-se daquelas vidas para as quais a continência de um professor pode significar um divisor de águas, jamais no sentido de correção ou de normalização de suas diferenças, de suas estranhezas. Ao contrário. São os alunos infames que oferecem suporte e lastro para o gesto docente, já que são parceiros fiéis de jornada com quem, uma vez conquistada a confiança necessária, se pode compartilhar o melhor da vida entre carteiras, cadernos e idéias.
McCourt narra uma passagem hilária sobre a dificuldade de fazê-los redigir textos e, ao mesmo tempo, a genialidade da arte dos bilhetes de desculpas dos pais por eles falsificados. Eram ataques de doenças de todos os tipos; incêndios ou alagamentos de proporções incalculáveis; bebês e animais de estimação que apreciavam devorar cadernos ou urinar sobre eles; trens-assassinos que fechavam cruelmente suas portas; tetos que desabavam etc. "Ali estava a escrita do ensino médio no que tinha de melhor – crua, real, premente, clara, concisa, mentirosa."
O professor com sotaque irlandês tem, então, um insight. Dever de casa: redigir um bilhete de desculpas de Adão para Deus; para as garotas, era Eva quem deveria assiná-lo. Para conhecer os desdobramentos da experiência, só tomando contato com o livro e seus personagens memoráveis.
Erráticos, extravagantes, intempestivos, tais alunos oferecem uma chance única de salvação do professor. Salvação da mesmice aterradora que nos convoca diuturnamente e que nos abate sem perdão. Precisamos de epifanias. Sem elas, tudo mais é cinza.
juliogroppa@editorasegmento.com.br
Julio Groppa Aquino – Professor da Faculdade de Educação da USP –