Escolas públicas alemãs ampliam experiência do projeto Buddy, em que os próprios alunos são responsáveis pela negociação e resolução de desentendimentos entre estudantes
Publicado em 10/09/2011
Roupas rasgadas, mochilas cortadas, celulares quebrados. Ameaçados, cuspidos, empurrados, jogados no chão, chantageados. Humilhados, amedrontados, inseguros, desesperados.
Cerca de 15 % dos alunos de ambos os sexos do ensino fundamental na Alemanha vivenciam, cotidianamente, momentos como esses na escola. Eles são vítimas da violência psicológica e física de seus próprios colegas.
A partir deste ano, boa parcela dessas crianças e jovens têm a chance de sair desse círculo vicioso por meio de um projeto batizado de Buddy (em inglês, camarada, colega). A idéia central é que, com o apoio de professores, os próprios alunos reconheçam conflitos e intermedeiem soluções. Com isso, ganham maior confiança e auto-estima; no colégio, cria-se um ambiente que aceita divergências e busca alternativas ao emprego da violência.
O projeto é uma iniciativa da ONG Buddy e existe desde 1999. Mas somente agora se está espalhando pela Alemanha – as 405 escolas da capital já adotam o método, enquanto mais dois Estados têm programas para levar a idéia a outros 400 colégios até julho próximo. A ONG é inteiramente financiada pela Fundação Vodafone, controlada pela empresa de mesmo nome, uma das maiores companhias de telefonia celular do mundo.
A proposta representa uma quebra na tradição da escola pública alemã, cuja direção e professores são responsáveis exclusivos pelo clima psicológico e social. Tradição oca, pois, na prática, já a partir dos primeiros anos reina a lei do mais forte.
O projeto começa com o treinamento de professores da escola que deseja implantar o Buddy. Depois, é a vez de os alunos aprenderem com os mestres. Finalmente, dá-se o início no dia-a-dia da escola.
O desafio da ruptura
Um dos maiores obstáculos para deslanchar o processo vem dos adultos. Presos a hábitos e costumes adquiridos ao longo da vida e dos anos de profissão, eles em geral evitam mudanças. A treinadora Marion Perlich explica: "Não é fácil transmitir aos alunos a capacidade de lidar construtivamente com conflitos. Mais difícil ainda é delegar responsabilidade a eles e ter confiança no processo. Somente quando os professores aprendem a lidar com conflitos é que podem transmitir isso aos estudantes na prática escolar".
Docente com mais de 25 anos de experiência, Marion sabe do que fala quando diz que o professor se sente como um combatente isolado, que precisa resolver sozinho todos os problemas. "É por isso que ele precisa ser alvo de muita compreensão [por parte dos treinadores] até que possa falar dos problemas na escola."
Esse é um ponto básico do treinamento, que dura oito horas diárias durante três dias. Em geral, participam professores de diversas escolas. Os temas abrangem desde como identificar e analisar um conflito até o uso de técnicas de mediação e de solução. Imediatamente após o curso, os professores enfrentam a prova de fogo de treinar os alunos. Colocam em prática o aprendizado diretamente com os jovens, num programa com a mesma carga horária. Marion fica como "curinga", dirimindo dúvidas e intermediando conflitos.
Com apoio da treinadora, já no primeiro dia os alunos discutem em plenário as regras que irão vigorar durante o treinamento e, no final, declaram aceitá-las. Durante os três dias, todos têm a oportunidade de ser o "xerife" das regras. Ainda tomam conhecimento de conceitos novos, como "conflito é necessário", e praticam exercícios de "ouvir ativamente" e "falar da própria raiva sem ferir os outros".
Durante os exercícios de identificação e mediação de conflitos, os alunos vivenciam situações que mudam constantemente. Assim, aprendem a coletar informações de maneira confiável e a se manter imparciais. Um caso é filmado em vídeo para que, de volta à escola, os estudantes vejam que foram capazes de resolver um conflito em curto tempo.
O formato do Buddy varia conforme as condições de cada escola. No caso do colégio Hauptschule Höhscheid, na cidade operária de Solingen, centro siderúrgico e de mineração no Vale do Ruhr, com 160 mil habitantes, o projeto espelha o perfil do alunado: 70% dos buddys são estrangeiros ou descendentes de turcos, albaneses, iugoslavos, espanhóis e portugueses. "Eles conhecem seus colegas muito melhor do que os professores. Pelo tom das discussões na língua materna, já sabem se estourou um conflito em que precisam atuar", afirma Jeannette Böttcher, que dirige o projeto.
Professora de inglês no ensino médio e orientadora do primeiro ano da 2a série, ela lembra as dificuldades do início. "Como são dois prédios com pátios separados, sempre foi problemático mandar os 280 alunos para o mesmo pátio na hora do recreio. Nos primeiros dias, os alunos, especialmente os de famílias muçulmanas, não reconheciam a autoridade dos buddys. Foi preciso que usassem a prerrogativa de impor sanções, como proibir um aluno de ficar num determinado lugar ou de encaminhar o recalcitrante para um professor", relembra.
Os buddys no colégio de Höhscheid são ao todo 17 jovens, dos quais nove garotos. A mistura é ideal, acrescenta Jeannette:"As moças são mais abertas e têm maior sensibilidade para o clima do momento, enquanto os garotos são mais ativos e decididos".
Em geral, os buddys se movimentam na escola em duplas. Mas há exceções, como no caso de um aluno de 13 anos que incomodava as moças menores. O plenário decidiu que quatro dos mais robustos alunos de 17 anos deveriam escoltá-lo por toda a escola, inclusive no banheiro. "Depois de certo tempo, o aluno pediu para que fosse retirada a escolta, sob a promessa de que não incomodaria mais", comemora Jeannette.
Em Hiltrup, cidade de 26 mil habitantes a nordeste de Düsseldorf , os buddys acompanham regularmente, de casa para a escola e vice-versa, os alunos que costumam faltar às aulas ou têm medo da agressão de crianças maiores. O sucesso dessa empreitada animou a direção da instituição a dar mais um passo: a partir deste ano, os buddys ajudam os colegas a rever a matéria do dia – de início matemática, gramática e inglês.
Os "companheiros" também cuidam do próprio treinamento por meio de atividades em grupo para reciclar o aprendido e saber o que muda no colégio. São realizadas, por exemplo, encenações de preparação para eventuais situações desconhecidas. A sensibilidade social junto aos colegas de sala é exercitada em atividades lúdicas. Por exemplo, os alunos formam um círculo, de olhos fechados, e um deles fala uma palavra que começa com A, os outros continuam o alfabeto, obedecendo à ordem da roda. Quando a ordem vira bagunça, pára-se o jogo para analisar as razões da falta de sintonia.
Os professores também ganham com o projeto. A responsável pelo Buddy no colégio Campe-Gymnasium, na cidade de Holzminden, Astrid Panitz, diz que, como os alunos resolvem entre si os problemas do dia-a-dia, os professores têm mais tempo para se ocupar de casos mais complexos. Por exemplo, quando os pais batem nos filhos ou os pressionam para terem melhores notas na escola. A vida na família é exatamente o limite do sucesso do Buddy, obstáculo que a ONG espera vencer no futuro.
GAROTOS DESTACAM MELHORA NO AMBIENTE ESCOLAR
Para Finn Grünewald, estudante de 14 anos do colégio de Höhscheid, o papel de buddy confere autoridade entre os mais jovens, mas isso não se estende aos alunos maiores do que ele. "Quando estou de serviço no recreio, os alunos das classes inferiores falam: ´pára a briga que vem um buddy’. Já os das classes superiores não aceitam que alguém das classes inferiores tenha mais poder do que eles. Mesmo quando não estou de serviço, olho o que acontece nos pátios da escola e quando vejo brigas vou lá e separo. Depois do Buddy, o ambiente na escola melhorou muito." Já para uma garota do 4o ano colegial de Holzminden , que preferiu não se identificar, é realmente uma ajuda ter a quem se dirigir sem ter que falar com o professor. "Muitas vezes a gente não precisa fazer muita coisa, apenas ouvir o que os alunos querem falar. E isso já é muito, melhora bastante o ambiente."