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De pequenino se torce o destino

Sobre o possível fatalismo da reprodução escolar e social

Publicado em 10/09/2011

por José Pacheco


Mais uma boca no mundo, mais um trafica chorando, lá vem mais um quase nada, mais um para chorar de fome, mais um para levar tiro, mais um bandido no morro, mais um perdido na vida…

Há dias, escutava a canção do Kleber e veio-me à memória alguém que conheço como a mim mesmo. Nasceu num "cortiço", onde havia quatro banheiros sujos e quebrados para partilhar com mais uma centena de pobres como ele. Passou a infância numa oficina de fazer vassouras, num bairro onde não entrava ambulância nem polícia. A sua família reinventava com dignidade a parca existência. O pai, que acumulava três empregos malpagos, foi preso, injustamente acusado de roubar. A família empenhou o que restava dos poucos haveres, para provar a sua inocência. A mãe morreu jovem, do cansaço de um trabalho insano. Os avós paternos cedo sucumbiram à fome e a um surto de tuberculose. Os maternos tinham migrado da aldeia rural para a cidade grande, na ilusão de uma vida melhor. Partiram cedo, minados pelo álcool e por maus-tratos.

Estava destinado a ser líder de uma gangue do bairro. Era um dos raros que sabia ler, era hábil a resolver encrencas e a escrever cartas de amor encomendadas. Tão sagaz quanto franzino, ganhara o respeito de ciganos e marginais, que nele não usavam as facas e o defendiam de outras sortes. Com eles aprendeu a gramática da sobrevivência: agredir os gringos que na rua aparecessem e, só depois de eles sangrarem, perguntar-lhes ao que vinham…

Conviveu com todo tipo de violência. Cedo entendeu que fora roubado todos os dias, desde o dia em que nascera. Que, enquanto os seus dormiam no chão da rua, outros dormiam sonos tranquilos. Foi perdendo amigas para a prostituição e amigos para o cárcere. A  tuberculose, a sífilis, a fome e a bala foram ceifando vidas ao seu redor. Nas juninas dos seus dezoito anos, o seu melhor amigo conheceu uma moça abastada e lá se foi, casamento de rico, sonho americano de ascensão social, que pouco durou. Sem amigos e sem futuro, pela mão de dois providenciais vizinhos, trocou a solidão pela evasão. Deles ficou devedor daquilo que nunca lhes pôde pagar: o resgate de uma vida. Trabalhou para poder estudar e fez um curso – fez-se professor.

Ele sabe, melhor do que ninguém, que os criminosos não nascem criminosos. Conhece os mecanismos sociais que os produzem. Por experiência pessoal, também sabe que, quando a sociedade e a escola produzem exclusão, o jovem não fica solto e busca a inclusão em grupos marginais. Sensível aos dramas vividos pelos seus alunos, entristecem-no certas atitudes de professores coniventes com a má qualidade de uma escola vocacionada para manter um sistema iníquo, no qual quem tem curso superior merece prisão especial…

Talvez porque não conheçam a sua história de vida, os seus colegas de profissão se tivessem surpreendido com a sua colérica reação, quando escutou este diálogo na sala dos professores: 

Aí, eu disse-lhe: Quem é que tu pensas que és, seu merdinhas? Saio de casa para aturar esta bosta! Eu não ganho para isso!

Fez muito bem, colega! Eles vêm de casa desse jeito. Já nasceram assim. Esse pestinha vai ser o próximo chefe de gangue. Eles não nasceram, eles foram cagados!

Será mesmo verdade que "quem nasce torto tarde ou nunca se endireita"? Aquilo que a psicologia chama de "profecia autorrealizada" agirá decisivamente na psique mais profunda dos professores? Sabemos que a escola não muda a sociedade, mas que muda com a sociedade, por isso, ouso perguntar: A reprodução escolar e social será um inevitável fatalismo? A escola nada poderá fazer para a contrariar? Ou poderá fazer a sua parte?

Autor

José Pacheco


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