Mesmo livres das barreiras que os impediam de ter acesso à carreira de professor no século passado, negros ainda são vítimas de preconceito velado que obstrui a ascensão
Publicado em 10/09/2011
Durante o Estado Novo, na busca de uma identidade nacional que norteasse o desenvolvimento brasileiro, a Europa era vista como modelo de civilização. A idéia fundadora de um brasileiro originário do branco europeu, do índio nativo e do negro africano, mergulhado na miscigenação e livre das tensões étnicas, ficou apenas no discurso da "unidade racial".
O historiador norte-americano Jerry Dávila afirma em Diploma de Brancura: Política Social e Racial no Brasil, 1917 – 1945 (Editora Unesp, 2005) que no começo do século 20 era comum encontrar nas escolas professores negros, com destaque para as mulheres, pois o ensino de crianças era uma profissão essencialmente feminina. Entretanto, entre as guerras mundiais o professorado passou por um branqueamento. Para o autor, isso se explica pelo fato de o sistema de ensino público ter se expandido muito no período e de os principais ideólogos desse crescimento serem pedagogos cujas idéias se baseavam nos moldes da educação européia. Na verdade, eram médicos e cientistas sociais ligados a valores da classe média.
As políticas implantadas por essa elite intelectual tinham como norte o branco europeu. Desse modo, os profissionais negros se viram diante da desigualdade no acesso aos postos de trabalho, assim como alunos negros e pobres foram preteridos pelo novo modelo de educação que naquele momento se desenvolvia.
O branqueamento dos docentes ocorria por meio de barreiras – nenhuma delas posta à mesa com clareza, evidentemente – para o ingresso do professor negro no ensino público do país. Havia "apenas" uma tônica em que prevalecia a cultura européia e branca no exercício da docência.
Hoje, isso não existe mais. Concursado, o professor do ensino público não precisa se identificar etnicamente durante o processo. Esse "anonimato racial" garante a irrelevância da cor de pele no concurso. E, apesar de não haver obrigatoriedade, os universitários que mais se identificam como negros, pardos ou mulatos são justamente aqueles que freqüentam o curso Normal Superior: segundo dados do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), 51,3% do total dos estudantes da área, contra 48% dos estudantes de Arquivologia e 45,9% dos de Biblioteconomia. Já a identificação dos docentes negros, seja na educação básica ou na superior, carece de dados. Apenas nos próximos censos educacionais começará a ser feito o levantamento sobre o perfil da docência no Brasil. Hoje, só é possível saber o número de funções docentes, ou seja, de postos por instituição.
Mais debate, mais racismo
Ora, poderia, então, se dizer que o ensino público, tão malhado por seus incontáveis problemas, tem ao menos a virtude de não ser racista em sua seleção? Infelizmente, a escola é democrática apenas até a porta: na rotina de sala de aula e na convivência dos pátios, a história é outra. Professores negros continuam a ser discriminados em seu processo de ascensão profissional e nas relações com colegas, alunos e pais. Esse racismo é velado e, portanto, difícil de ser enfrentado. Ainda que as leis e ações afirmativas possam ajudar na participação mais efetiva do professor negro, a situação só muda com várias ações de reeducação dos próprios educadores.
Professora de língua portuguesa no ensino básico público e de letras no superior privado, Regina Moraes entrevistou um grupo de professores negros com mais de dez anos de magistério para a sua dissertação de mestrado. Sua idéia era saber como eles tinham a sua identidade profissional reconhecida em uma sociedade que prima pelo exercício de um racismo velado. Concluiu que nenhum dos entrevistados foi vítima de racismo declarado e ostensivo, mas garante que "o professor negro tem sempre de demonstrar mais competência para ser reconhecido como profissional".
"As pessoas notam problemas de racismo nas relações interpessoais, mas o problema institucional não é visto", explica Henrique Cunha Jr., professor nos cursos de Engenharia e de Educação na Universidade Federal do Ceará. Isso quer dizer que na escola, assim como em todos os setores sociais, muita gente acredita que só é racismo aquilo que se manifesta explicitamente. Como isso é pontual e cada vez menos freqüente, o problema fica escondido no armário.
Para Mary Castro, professora da Universidade Católica de Salvador, essa é a "estratégia de avestruz". Ela avalia que para muitos educadores "não existe racismo e há a idéia de que o aumento da discussão vai gerar racismo". Mary se apóia nos resultados da pesquisa "Relações raciais na escola: a reprodução da desigualdade em nome da igualdade", coordenada por ela para a Unesco em 2003. No trabalho, um diretor de uma escola pública do Distrito Federal diz: "Acho que, quanto mais você mexer naquilo que causa polêmica, pior é".
Esse não é o único exemplo da pesquisa, realizada em 20 escolas públicas, quatro em cada cidade (Belém, São Paulo, Salvador, Brasília e Porto Alegre). Os dados apurados dão um panorama de como o racismo está presente e de como afeta o desempenho escolar. Entre as técnicas utilizadas, além das entrevistas com alunos, professores e diretores, foram feitas observações de rotinas de sala de aula e de outras dependências nas escolas. O problema, na opinião de Mary, é a dificuldade para se reconhecer o racismo. Em outra entrevista, uma professora de escola particular em Belém demonstra o que isso significa ao responder à pergunta: "Qual a composição racial da escola?"
"Tentamos nem tocar nesse assunto para que justamente não sustente o racismo. Então, aqui todos são tratados como iguais, nós procuramos não abordar esses temas para que não venham a despertar esse tipo de preconceito e justamente colocar que para a rede isso não existe. Todos aqui são iguais, apenas com cores de pele diferentes."
Banalização do mal
Para Conceição de Jesus, muito do que se discute sobre o racismo no processo de formação de docentes é esquecido na hora da prática |
Mary conta que a pesquisa teve origem nos resultados de desempenho escolar do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) veiculados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), segundo o qual os alunos negros vêm tendo notas mais baixas do que os não-negros, com discrepâncias até na mesma escola. "A hipótese de muitos é que já havia se esgotado o cruzamento de renda, educação de pais e local de residência para explicar o diferencial por etnicidade", diz a professora. "A nossa é que havia algo mais e que poderia estar ligado a auto-estima."
Os resultados atingidos, ainda que não apresentem um estudo quantitativo, revelaram em várias entrevistas o massacre da auto-estima de alunos negros.
"O que nos chamou muito a atenção foram os apelidos", assinala Mary. Ela aponta que muitos não julgam apelidos ofensivos como algo negativo: "Não é uma maldade, é um construto cultural, inclusive da adolescência, em que chamar por um apelido é fazer parte do grupo, mas é uma forma de violência, uma violência que vai sendo banalizada", discorre. "Esse termo banalização da violência é de autoria da [pensadora] Hannah Arendt para falar do nosso século." Arendt, que reflete sobre o julgamento do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, manifesta a existência de um novo tipo de criminoso que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado. Segundo a autora, o mais assustador disso tudo é que essas pessoas parecem absolutamente normais.
Sobre os apelidos, Mary lembra que "ninguém afirmava que isso é violento, mas quando conversávamos apenas com alunos e professores negros, vinham as lágrimas". A justificativa para que eles não se rebelassem era que queriam fazer parte do grupo, e por isso fingiam que não era com eles. Contudo, os resultados indicavam um sentimento de inferioridade desses alunos, o que acaba afetando o desempenho escolar. "Quando a gente cruza os dados com classe social, ela faz diferença no desempenho até uma certa idade, depois disso é raça mesmo", considera Mary. Ela diz que as diferenças ficam ainda mais evidentes se o grupo tem maior poder aquisitivo. "Nas escolas mais ricas, são tão poucos os negros que eles se sentem ainda mais inferiorizados."
Problema dos negros
Esse modelo de escola que não enxerga suas mazelas desmobiliza o combate ao racismo. Regina Moraes lembra que uma professora negra entrevistada para a sua dissertação ascendeu profissionalmente e se tornou coordenadora. Ainda que a direção da escola a tenha avaliado bem, o mesmo não aconteceu com os seus colegas que, apesar de não terem se manifestado explicitamente, ofereceram certa resistência nas relações cotidianas. "Mesmo ela sendo consciente, tentava escamotear dizendo ‘eu senti resistência, mas é porque eles não me conheciam, porque eu vim de outra cidade’", relata Regina. "Era difícil para ela associar a resistência à cor da pele."
"Há um distanciamento grande entre o discurso e a prática, não apenas na questão racial, mas no que tange a toda a formação do professor", destaca Conceição Aparecida de Jesus, que atua com projetos educacionais na formação de professores e que durante décadas trabalhou como docente e coordenadora na rede pública de São Paulo. "Na formação, você vê verbalizações sofisticadas sobre a diversidade, mas os projetos desses professores são incoerentes." Ou seja, muito do que é discutido na preparação não chega à linha de frente da educação.
Um dos motivos é que poucos educadores encaram o racismo como uma ampla chaga social, e sim como problema de determinada categoria. "Não podemos supor que o fato de o professor ser negro servirá para solucionar uma questão que é sistêmica só porque ele está envolvido nesse sistema", reclama a consultora da Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis, Jeruse Romão. "O sistema educacional responde muito mal a esse problema: ‘Ah, é assunto de negro, então vai fulano porque é negro’."
Jeruse crê que o fato de a discussão acerca das relações raciais na escola ter sido uma conquista do movimento negro acabou estigmatizando qualquer tema ligado a racismo como algo que deve ser conduzido e resolvido pela população negra.
Para Henrique Cunha Jr., "não basta mudar quem opera o racismo, mas também quem não opera". Ele considera que "a maioria acaba pensando que não é racista, então não precisa fazer nada".
Origem
Ainda que a inserção do negro em cargos de comando seja maior do que há algumas décadas, sua participação nas decisões dos rumos da educação brasileira é limitada. De qualquer forma, os movimentos de defesa das populações negras conseguiram mudanças como as estabelecidas pela Lei 10.639 (veja texto acima). O problema está no longo caminho educacional pelo qual um professor passa. "As pessoas não podem ensinar aquilo que não aprenderam", resume Jeruse.
Para ela, a cultura da escola precisa mudar. A consultora dá o exemplo da LDB, que determina uma gestão democrática para instituição de ensino: "A escola precisa ter um sistema colegiado, mas a gente vê pouca participação das comunidades negras, pouco acostumadas a esse diálogo".
A professora Wilma Coelho, do curso de Educação da Universidade Federal do Pará, considera que o Brasil ainda tem um currículo construído em uma perspectiva eurocêntrica. Entretanto, pondera que existem cursos de graduação e de pós que trabalham a cultura africana e que podem trazer mudanças significativas em cinco ou dez anos. "Esse é um tempo necessário de formação de massa crítica dentro das universidades e de sua aplicação nas escolas."
Mas alerta para a forma como isso será discutido em ambientes educacionais. Uma mudança de foco no modelo de ensino para contemplar a inserção do negro não deve ser feita de forma exagerada. Ações panfletárias pouco contribuem, pois as questões nacionais ficam individuais. "Você fragiliza uma discussão mais ampla, mais estrutural."
A LEI E A ÁFRICA
Homologada há quatro anos, a Lei 10.639 é vista como um avanço conquistado pelos movimentos negros na educação brasileira. Ela determina que sejam incluídos conteúdos voltados para as relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.
De acordo com Jeruse Romão, consultora da Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis, "a Lei propõe um diálogo sobre os valores civilizatórios, e não esse monólogo eurocêntrico que temos".
Uma crítica freqüente à Lei é que ela é genérica ao falar da "cultura africana", como se o continente fosse homogêneo, sem diferenças étnicas, históricas, políticas, religiosas e culturais. Para Cristina Jorge, diretora da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares, o propósito da Lei 10.639 é excelente, mas precisa ser desenvolvido. Segundo ela, a falta de bibliografia e de profissionais com formação para trabalhar vai obrigar a se ver a África como um todo. Num segundo momento, será possível concentrar-se nas regiões de origem dos escravos que vieram para o Brasil e, finalmente, quando já houver uma boa pesquisa sobre o continente, o ensino poderá abranger todos os países e suas diferenças. "Os senhores dos engenhos tinham o cuidado de não juntar muitos escravos de uma mesma etnia para evitar a identificação cultural e uma possível rebelião", conta Cristina. "Ou seja, o século 16 já reconhecia isso, o século 21, não."