Com temas do momento, tratados a quente, o pernambucano Marcelino Freire dialoga com o mundo urbano - denso, violento, fugaz
Publicado em 10/09/2011
A leitura deveria ser o tema transversal por excelência. Ler bem, com atenção e reflexão contínuas, é aprendizado intenso. Ler os clássicos, ou os autores que já passaram pelo teste do tempo, mas ler também autores que estão em trânsito, contemporâneos nossos, com quem nos encontramos face a face, não só nas páginas do livro, mas na calçada, no restaurante, no elevador.
Marcelino Freire é escritor da nossa hora, pernambucano (nasceu em 1967), vive em São Paulo desde 1991. Pertence à chamada "Geração 90", autores que as editoras maiores passam a publicar sem receio, escritores que já receberam alguns prêmios importantes, mas ainda precisam lutar pelo espaço e pelo pão.
Com esses escritores, e com Marcelino neste caso, poderemos dialogar sobre temas da nossa hora também. Não apenas os temas eternos, as eternas questões de que toda literatura trata (o amor, a morte, a solidão etc.), mas os temas urgentes e atuais, temas que estão na ordem do dia: a violência urbana, o caos ecológico, o discurso político desacreditado, as relações humanas deterioradas, o tráfico de drogas, o homossexualismo, o racismo, a educação a um tempo democratizada e fragilizada.
O tratamento literário também é outro, influenciado não mais pela velocidade das máquinas e a presença crescente dos meios de comunicação (que preocupavam poetas como Carlos Drummond de Andrade e Cassiano Ricardo), mas pela instantaneidade do virtual, a dispersão mental crônica, a enxurrada incontrolável de informações, e pela concisão obsessiva.
O livro
eraOdito
(brincando com o que seria erudito…), de 1998, reelabora as frases feitas, os provérbios, com uma dinâmica que capta de imediato os alunos internautas. A psicanalista Maria Rita Kehl, a propósito deste livro, disse que sua filha de 11 anos "entendeu tão bem que acabou roubando para ela".
Ao destacar graficamente algumas letras, Marcelino diz as entrelinhas e o interdito, ensina uma forma de ler criticamente, sem medo de levar sustos. Crítica que é peteleco em nossa desatenção, fisgada na consciência, revelando um pensamento que nos assalta e vai embora… deixando-nos, porém, o produto do "roubo", a interpretação inusitada.
A educação: tudo e nada
Os personagens de Marcelino não são personagens. Somos nós, mas são, em especial, os destituídos, os que ficam sempre à margem da riqueza, do poder e da escola. Em
Contos negreiros
(2005, ganhador de um Jabuti), dramatiza a situação de um universitário negro beneficiado pela política de cotas. "Curso superior" é um conto curto, no qual o protagonista desabafa com sua mãe:
O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o que é que eu faço agora hein mãe não sei. […] O meu medo é que mesmo com diploma debaixo do braço andando por aí desiludido e desempregado o policial me olhe de cara feia e eu acabe fazendo uma burrice sei lá uma besteira será que vou ter direito a uma cela especial hein mãe não sei.
Estudar é muito na vida, mas não é tudo, e por vezes, em certas circunstâncias, não é nada. O diploma como passaporte para um emprego nem sempre tem validade… O diploma como salvo-conduto social depende de outras circunstâncias como a cor da pele, a conta bancária, um bom networking…
Alguns poderão questionar o conto, lembrando aspectos técnicos da política de cotas, apresentando resultados estatísticos positivos, além de abordar a necessidade de ações que beneficiem parcelas da sociedade que sofreram incontestável discriminação na história do país.
Mas a provocação do texto consiste justamente em nos fazer pensar para além (ou aquém) das intenções abstratas e dos discursos demagógicos.
Poesia não é coisa que se ensine…
No seu trabalho mais recente, Rasif – mar que arrebenta (2008, pela Editora Record), Marcelino escreve um conto ("Amigo do rei") marcadamente autobiográfico. O menino minguado decepciona o pai, que o queria jogador de futebol. O menino deseja ser poeta. E apaixonou-se por Manuel. Por Manuel Bandeira:
Vou lá na escola. E foi. A escola ficava ali perto. Hoje eu tiro a limpo. Eu é que não vou ficar jogando o destino do menino no lixo. […] Bola. Meu filho não gosta de bola. Procurou o senhor diretor. O que faço? Queria saber quem era o culpado. […] Foi à sala dos professores desabafar suas dores. Manuel Bandeira. Como é que é? A professora repetiu. Seu filho gosta do Manuel. Hã? Manuel Bandeira. Autor do "Vou-me embora pra Pasárgada", lembra?
O pai não conhece o poema. Confunde o poeta com um garoto pelo qual o filho estivesse apaixonado. Além de não saber chutar bola, homossexual. O pai chora e reza. Se conhecesse o poema, porém, e o poeta, entenderia melhor o seu próprio filho. Saberia que o poeta Bandeira, nestes versos, está brigando também com o pai. O pai do poeta queria que ele fosse arquiteto. Bandeira não realizou o sonho paterno, mas construiu a sua Pasárgada, onde é amigo do rei, construção imaginária que se imortalizou na memória dos seus leitores, utopia inspirando novos poetas.
Poesia, realmente, não é coisa que se ensine na escola. Ou, talvez, devesse ser a única disciplina!