Divergências entre adeptos da ciência e das crenças místicas alimentam debate sobre homeschooling
Publicado em 10/09/2011
Acampamento de Jesus: até onde vai o direito da família de definir o que é válido para os filhos? |
A seqüência inicial de Acampamento de Jesus (Jesus Camp, EUA, 2006), documentário de Heidi Ewing e Rachel Grady que concorreu ao Oscar 2007, mostra uma mãe e seu filho, em casa. De pé, ela mantém um olho no fogão e outro no menino, que está com o caderno aberto sobre uma mesa redonda, situada numa área de transição entre a cozinha e a sala. "Não vou mandar meu filho para a escola", diz ela. "Lá eles ensinam mentiras como aquecimento global e evolucionismo", explica. "Quero que ele cresça compartilhando os valores nos quais eu acredito", conclui a mulher, eleitora e admiradora de George W. Bush, que se declara preparada para ser professora do próprio filho, embora em nenhum momento revele ter formação específica para isso.
Acampamento de Jesus – exibido no festival de documentários É Tudo Verdade e com lançamento no Brasil previsto para este ano – mostra as entranhas de um curso para formação de líderes evangélicos em North Dakota, que tem como público-alvo meninos e meninas de 10 anos de idade, ou menos. Seu principal personagem é a "educadora" Becky Fischer, pastora responsável pelo treinamento das crianças. Becky, que provoca risadas e aplausos com sua teoria conspiratória sobre Harry Potter, é admiradora do presidente Bush: "Ele de fato trouxe alguma credibilidade real à fé cristã", diz ela.
Individual ou coletivo?
O surpreendente é que, embora o acampamento que nomeie o filme se passe numa cidadezinha ironicamente chamada Devil’s Lake (Lago do Diabo), seu conteúdo não foi contestado pelos evangélicos neopentecostais que nele aparecem – com exceção do pastor Ted Haggard, que, num dado momento, dispara para as câmeras, "se você usar isso, eu te processo". Não processou, talvez por falta de tempo. Ex-assessor de Bush, Haggard foi afastado em novembro de 2006 da direção da igreja que fundou, a New Life Church, no Colorado, depois ser acusado de consumo de drogas e abuso sexual por um michê, e se confessado imoral perante os fiéis quando do anúncio do encerramento de sua carreira de pregador.
Ainda que o tema do filme seja instigante e atual por trazer ao debate público o acalorado embate político que opõe defensores do criacionismo e do evolucionismo nos EUA, sua cena inicial revela outra tendência da sociedade americana contemporânea. A figura da mãe (ou pai) que ensina o próprio filho, privando-o da experiência escolar, é cada vez mais comum por lá. Sim, o chamado home schooling está na moda nos EUA. E não apenas por motivos religiosos, embora os evangélicos fundamentalistas, que acreditam que o mundo foi criado por Deus há cerca de 6 mil anos, estejam entre os maiores adeptos do ensino caseiro, longe dos bancos escolares. Será que esse duplo debate – ensino religioso ou laico e home schooling – encontrará terreno fértil no Brasil, país no qual 97% da população declara acreditar em Deus, de acordo com pesquisa Datafolha divulgada em maio? "Conhecendo a cultura americana e o conceito deles de liberdade, acredito que não", opina Ulisses Araújo, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Leste. "Nos EUA, muitas vezes o indivíduo está acima do coletivo. Não é o que ocorre no Brasil. Nossa referência é muito mais a francesa, de liberdade, igualdade e fraternidade", acredita.
Embora a análise de Araújo seja compartilhada pelo establishment da educação no país, não se pode ignorar o fato de que, no Brasil, as religiões pentecostais crescem rapidamente e muitas delas contestam o evolucionismo em cartilhas com alta circulação entre os fiéis. De acordo com os dados coletados pelo Datafolha, no Sudeste os evangélicos já são 20% da população; e nas franjas das metrópoles, esse percentual é bem mais elevado. Seria compreensível, portanto, que essa população, que forma uma nação pouco menos populosa que a Argentina, defendesse um ensino de acordo com suas crenças. "É possível", concede Araújo. "Mas o pensamento de extrema direita não tem penetração em nosso país, o que esvazia o embate entre criacionismo e evolucionismo, sobretudo no âmbito escolar. E, depois de oito anos de FHC e outros oito de Lula, a esquerda teria de fazer muita besteira para isso acontecer", conclui.
Engana-se quem acredita que o embate ideológico entre estado laico e educação religiosa limita-se aos EUA. Na Espanha, por exemplo, por muito pouco o Estado deixou de ser laico, em pleno século 21. Em 2004, o conservador Partido Popular havia decidido que todas as escolas secundárias do país teriam ensino católico obrigatório. Com a vitória nas urnas sobre o PP do então primeiro-ministro José María Aznar, que governara o país por oito anos, os socialistas engavetaram o projeto. Historicamente, a religião católica na Espanha abriga o pensamento conservador.
Filosofia e análise política à parte, uma questão permanece sem resposta: por que no Brasil, em que 86% dos habitantes crêem que Maria, sendo virgem, deu à luz Jesus, segundo a pesquisa do Datafolha, a discussão sobre ensino religioso, em termos contemporâneos, parece não existir, ao menos publicamente? E, tomando carona nessa pergunta, afinal, os pais têm ou não o direito de educar os filhos em casa, privando-os do convívio escolar e da construção da autonomia social?
Para saber mais
– Fracasso Escolar: um Olhar Psicopedagógico, de Nádia Bossa (Artmed, 2002) Nádia A. Bossa
– A Construção de Escolas Democráticas, de Ulisses Araújo (Moderna, 2002)
– Como Educar meu Filho?, de Rosely Sayão (Publifolha, 2003)
– Em Defesa da Escola, de Rosely Sayão e Julio Groppa Aquino (Papirus, 2004)
– A Corrosão do Caráter: Conseqüências Pessoais do Trabalho no Novo capitalismo, de Richard Sennett (Record, 2004)
– A cultura do novo capitalismo, de Richard Sennett (Record, 2006)
– Aprendi com meu pai, de Luís Colombini (Versar, 2006)
– Educação e valores, de Ulisses Araújo e Josep Maria Puig, organizado por Valéria Amorim Arantes (Summus, 2007)
– Pedagogia do Consumo, de Inez Lemos (Autêntica, 2007)