|
Thiago Fernandes da Silveira, professor: “acontecia de chegar ao final do ano e eu nem conhecer direito alguns alunos”
|
A rotina diária de Helena Cristina Penteado, professora de educação infantil da rede municipal de São Paulo, tem início às 7 horas, na Emei Antonio Bento, no Butantã, zona oeste da capital paulista. Três vezes por semana, ela tem 40 minutos cravados no relógio para almoçar e se deslocar até a Emei Monte Castelo, a quase dois quilômetros dali, onde dá aula até 19h.
Mesmo passando quase 12 horas por dia nos locais de trabalho, Helena ocupa parte de seu tempo livre, em casa, para resolver pendências relacionadas às tarefas escolares. “Não dá tempo para fazer pesquisas, preparar atividades e preencher relatórios na escola, por conta de tudo aquilo que a gente tem de cumprir”, conta. Sem contar casos especiais, como o sábado de junho em que a professora teria de trabalhar, nas duas escolas, em razão das festas juninas. “Vou para uma unidade um pouco mais cedo que os demais, cumpro meu horário e parto para a outra. Nisto, vou pegar metade de uma festa e metade da outra”.
A situação de Helena, que tem uma jornada diária de trabalho extensa e dividida entre duas escolas, representa, se não a maioria, pelo menos uma parcela significativa dos docentes brasileiros. Dados do Ministério da Educação mostram que, em 2009, 40% dos professores da Educação Básica no país atuavam em mais de um turno, sendo quase 33% em dois e os outros 7%, em três períodos. Segundo as estatísticas, 18% dos docentes lecionavam em duas escolas e 3% em três estabelecimentos.
Confirmando a impressão geral de que professores trabalham muito, pesquisa realizada em 2007 pelo Ibope Inteligência para a Fundação Victor Civita apontou que 51% dos professores dobram a jornada e que 19% deles dão aulas em até três períodos. O estudo também mostrou que os professores gastam, em média, 59 horas por semana em atividades relacionadas ao trabalho. Deste total, praticamente 50% correspondem a horas em sala de aula. E que, diariamente, cerca de 3 horas são gastas para ir de casa à escola ou em deslocamentos entre escolas onde lecionam.
Cálculos desencontrados Os números do MEC apresentam resultados muito diferentes do estudo. O que se pode considerar é que os dados oficiais não incluem professores de turmas de atividade complementar e que os docentes são contados uma única vez em cada unidade da Federação, porém eles podem efetivamente trabalhar em mais de uma rede. Pode-se considerar que quem dá aulas em duas cidades não entra na conta de duas escolas ou dupla jornada. E não é difícil encontrar pessoas nesta situação na região metropolitana de São Paulo, por exemplo. O professor de geografia Thiago Fernandes Teixeira da Silva é contratado pela rede estadual, com aulas atribuídas em Osasco, cidade vizinha à capital paulista, onde ele também é funcionário da prefeitura. Já a pesquisa do Ibope/Fundação Victor Civita trabalhou com amostragem. Foram 500 professores em todo o Brasil, entrevistados por telefone.
A dificuldade de encontrar dados satisfatórios sobre uma informação tão simples do trabalho dos professores brasileiros é o primeiro indicativo dos problemas que afetam a profissão. Mesmo que 40% da categoria faça dupla jornada, como apontam os dados oficiais, o número é significativo, quando se tem o excesso de trabalho como fator que prejudica a qualidade do ensino e a satisfação pessoal e profissional.
Impacto na qualidade “Como a educação no Brasil não é de período integral, salvo exceções, os professores acabam tendo dois empregos para complementar a renda. E a gente fica se perguntando em que hora do dia eles planejam, corrigem deveres, preparam aulas”, comenta Angela Dannemann, diretora-executiva da Fundação Victor Civita.
Segundo ela, o reconhecimento de que a dedicação dos professores a apenas um período de aulas é melhor para a qualidade do trabalho é um dos motivos para que redes estaduais e municipais estejam tentando eliminar as possibilidades da tripla jornada, que aparece em menor quantidade, mas ainda é praticada. A professora Helena Cristina conta que a rede municipal de São Paulo realizou mudanças nos últimos anos. Os três turnos de aulas foram transformados em dois. Mas os professores continuam tendo três horários possíveis a cumprir, das 7h às 11h, das 11h às 15h e das 15h às 19h, o que impossibilita assumir turmas no primeiro e no segundo turnos em escolas diferentes.
“Os mecanismos adotados para impedir que o professor pule de uma escola para outra não oferecem a compensação financeira para a nova condição”, afirma Angela.
Segundo ela, o número excessivo de horas de trabalho acarreta estresse e problemas psicossociais. “Quando o trabalho preenche o dia inteiro, a pessoa pode ter conflitos familiares, cobrança de atenção pelo cônjuge e filhos”, afirma a pesquisadora. Na percepção da educadora Helena, é alto o número de professores que acabam tendo problemas de saúde e necessitando de licença médica, por conta das pressões no trabalho.
Ao longo de sua carreira, Helena já sentiu o peso da dupla jornada em diferentes âmbitos da vida pessoal. Precisou deixar a universidade, porque não conseguia conciliar os dois períodos de aula com os estudos, além da família. Ela ingressou na rede em 2003, com diploma de magistério, sempre cumprindo mais de um turno. Mesmo sem a faculdade, conseguiu o nível superior pelo programa de formação proporcionado pela prefeitura, em parceria com a USP, para professores da rede.
O cansaço bateu forte no ano em que trabalhou em um CEU, com três turmas diferentes, por conta do horário diferenciado do estabelecimento. “Era uma classe na faixa dos seis anos de idade das 7h às 11h; outra na média dos cinco anos de idade das 11h às 13h e crianças de quatro anos das 13h às 15h”, detalha. Eram três planejamentos, com três tipos diferentes de atividades. “Não dá para fazer a mesma coisa com as crianças do segundo estágio e com as do primeiro. As menores ainda estavam se adaptando, descobrindo a chegada à escola”, conta.
Processo formativo O planejamento feito de forma consistente e a dedicação a uma única classe são os pontos frágeis no acúmulo de turnos e escolas, como é comum entre os professores brasileiros. “O educador é um profissional de formação, o que significa que ele precisa se atualizar constantemente. É um trabalho que demanda planejamento frequente, avaliação continuada, acompanhamento dos processos, registro, precisa de tempo de aprimoramento. Se ele está o dia inteiro dando aula, não consegue fazer isso”, pondera Angela, da Fundação Victor Civita.
Para o educador português António Nóvoa, a prática de dar aulas em mais de uma escola torna impraticável o desenvolvimento de um professor reflexivo e que trabalha em equipe – temas centrais de suas teorias e linhas de investigação. “Defendemos a existência de um projeto pedagógico nas escolas, que funcione como fio condutor de todas as atividades, com envolvimento dos professores, em cooperação. Se eles não estão mais na escola após dar as aulas, porque vão para outra, é impossível concretizar tais objetivos”, afirma.
Nóvoa é reitor da Universidade de Lisboa, catedrático da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da instituição e um dos pesquisadores de referência no campo educacional. Em visita ao Brasil, em maio, mostrou-se surpreso durante uma palestra, na qual foi comentado o fato de professores brasileiros praticarem a dupla jornada e até em escolas diferentes. “O Brasil é o único país que conheço onde isso acontece”, declarou.
Segundo ele, na Europa não é comum que professores de Educação Básica vivam tal situação. “Em média, eles cumprem cerca de 30 horas semanais, em uma única escola. Há cerca de 30 anos isso acontecia em Portugal, mas desde então, não mais.”
Em seu livro mais recente
Professores, imagens do futuro presente , de 2009 (ainda não publicado no Brasil), ele afirma que “nada será conseguido se não se alterarem as condições existentes nas escolas e as políticas públicas em relação aos professores. É inútil apelar à reflexão se não houver uma organização das escolas que a facilite”. A afirmação, que busca uma formação de professores mais sólida, faz sentido para a situação precária em que a profissão se encontra, na qual o fato de precisar trabalhar em duas escolas é mais um dos sintomas.
Tentativas A história do professor Thiago Fernandes da Silveira, que trabalha nas redes estadual e municipal de São Paulo, é um exemplo dos desafios que os docentes encontram na dupla jornada. Há três anos na carreira, desde o início ele tem dois empregos, pelo motivo financeiro. “Na rede estadual, o salário da jornada básica de 25 horas seria por volta de R$ 800, o que é inviável”, comenta.
Neste ano, ele cumpre 10 horas-aula no período da manha, três dias por semana, em uma escola estadual em Osasco, das 8h50 às 12h20. À tarde, são 25 horas-aula todos os dias, das 13h30 às 18h30, no CEU Jaguaré, em São Paulo. Primeiro, leciona para turmas de ensino médio e no segundo período tem classes de 6º e 7º anos do ensino fundamental.
Fora as mais de 12 horas fora de casa (contando o tempo de deslocamento, que ele faz por transporte público), ele ainda acaba gastando pelo menos uma hora diária de planejamento e avaliação. “Acabo me preparando para o dia seguinte ou a próxima semana, pelo fato de estar nas duas escolas. O ideal seria fazer um plano para o bimestre, mas isto acaba não acontecendo.” Em semanas de avaliação, Thiago tem uma sobrecarga de trabalho em casa. “Mas não deixo passar muito mais de duas horas, caso contrário perco a vida social”, considera.
No ano passado, entretanto, ele dava aula nos três turnos, manhã, tarde e noite. “Era bem pior, quase não via minha esposa”, que por sinal também é professora e se divide entre duas escolas. A carga horária mais extensa comprometia a qualidade do trabalho. “Eu tinha 12 salas, acontecia de chegar ao final do ano e nem conhecer direito alguns alunos.”
O fato é que a questão financeira continua sendo a grande barreira para que os professores trabalhem da forma como gostariam. A fixação em um único local traz várias vantagens para o convívio e as práticas docentes. Além de poupar o professor do excesso de aulas, do número elevado de alunos (que não permite uma atenção mais individualizada), e do desgaste natural dos deslocamentos, permite que se invista em um projeto pedagógico coletivo. Sem esse convívio mais aprofundado, fica difícil fazer com que os docentes façam um trabalho articulado e troquem impressões e informações sobre seu desenvolvimento.