Um texto não interpretado permanece vivo para sempre
Publicado em 10/09/2011
Uma livreira me contou. Um pai foi à sua livraria e comprou o livro O patinho que não aprendeu a voar, para seu filho. No dia seguinte, voltou muito bravo. "Meu filho chorou ao final do livro. Ainda chora quando se lembra do patinho que não aprendeu a voar. Isso é livro que se dê a uma criança?"
Eu compreendo. Ele quer que seu filho só tenha alegrias. Ele quer que os livros que seu filho lê sejam engraçados e façam rir. As crianças não deveriam ler livros que fazem chorar.
Mas tristeza não é coisa ruim. A poesia brota da tristeza. Alberto Caeiro escreveu: "Mas eu fico triste como um pôr de sol/Para a nossa imaginação/Quando esfria no fundo da planície/E se sente a noite entrada/Como uma borboleta pela janela/Mas minha tristeza é sossego/Porque é natural e justa/E é o que deve estar na alma…" Escrevi muitas estórias alegres e que fazem rir. Mas as que mais amo são aquelas que fazem chorar.
Por que é que o menininho chorou ao ler a estória do patinho que não aprendeu a voar? Porque sentiu aquilo que minha neta sentiu. Ela falou, em meio às lágrimas: "Vovô, eu não consigo ver uma pessoa sofrendo sem sofrer. Quando vejo uma pessoa sofrendo o meu coração fica junto ao coração dela…" Ela e o menininho sentiram compaixão. Seus corações ficaram junto ao coração de alguém ou de algum bichinho que estava sofrendo. Sofreram um sofrimento que não era seu.
Como ensinar a compaixão? De que vale conhecimento sem compaixão? Somente o conhecimento com compaixão cria a bondade. E uma sociedade em que não existe a bondade não é digna de que vivamos nela. Como a nossa, em que a bondade foi espremida nos cantos e as ruas se encheram de medo.
Gandhi relata que a experiência que mudou o seu coração foi a leitura de um livro. Ele era ainda adolescente. O livro o comoveu tanto que ele queria ser como o herói, nobre e generoso. Esse sentimento o acompanhou pelo resto da vida. Seu coração ficou junto ao coração do herói. E não importava que o herói nunca tivesse existido, que fosse apenas uma ficção literária. Pois é isso que a literatura faz: se desprega da vida real para dar-lhe um sentido.
Livros engraçados são bons. O riso tem a função de mostrar que o rei está nu. Mas não conheço nenhum caso de uma pessoa que tenha sido transformada por um livro engraçado. O riso provoca crítica, mas não provoca compaixão.
Pensei então que essa poderia ser uma das maneiras de ensinar compaixão: lendo para o aluno ouvir. Mas para que as estórias façam os seus milagres é preciso que o ouvinte seja possuído pelas palavras e levado ao sabor da voz de quem lê a estória.
Fiquei então pensando que seria melhor que gastássemos menos tempo com gramática e análise sintática, e mais tempo com a leitura. É na leitura que se aprende a língua. Leitura sem testes de compreensão, sem interpretações, o que é que o autor queria dizer etc. Pura emoção. Um texto não interpretado permanece vivo para sempre, porque permanece como um enigma que nos comove todas as vezes que o lemos. Mas um texto interpretado é um texto esgotado do seu mistério, esquartejado sobre a mesa de anatomia da linguagem.
Gostaria de conversar com o pai do menino que chorou ao ler O patinho que não aprendeu a voar. O menino entendeu. Sentiu compaixão. Mas o pai não entendeu. Não chorou. Ou, quem sabe, ele ficou bravo não pelo choro do seu filho mas por ter, ele mesmo, sentido vontade de chorar – mas não chorou de vergonha…