A saga de fulano, que um dia queria ensinar mas perdeu-se nos desvãos do caminho para habilitar-se a fazer o que sabia
Publicado em 10/09/2011
É a sorte de todas as instituições humanas trazerem em si o germe da sua destruição.
Machado de Assis
E então, um dia, fulano acorda e pensa que quer ensinar. Fulano acorda, pensa que quer ensinar, e isso lhe basta. Fulano acorda, pensa no que lhe basta, mas se vê obrigado a se habilitar para o que antes parecia pouco bastar. “Muito obrigado” é o que pensa. Fulano acorda, pensa o que já pensava, mas acaba capitulando: habilita-se pacientemente. Fulano acorda e, enquanto se habilita, finge não pensar, mas pensa. Prossegue com alguma convicção, contudo. Fulano acorda e pouco pensa, mas devaneia, e devaneia em se libertar. Fulano acorda e já não pensa, apenas devaneia. Fulano acorda e não pensa que um dia terá de ensinar. Isso ficará para depois.
E então fulano acorda, pensa que está livre enfim, e exibe sua habilitação feito um alvará. Fulano acorda, respira a fundo os ares da libertação recém-conquistada e pensa, com alguma convicção, que ainda quer ensinar. Fulano acorda e pensa que, sim, quer ensinar – o que sempre lhe bastou, e agora ainda mais, já que se libertou de vez; é seu direito adquirido. Fulano acorda, pensa que vai ensinar de fato e de direito, e também de modo libertário, habilitando os outros que, por sua vez, já dispõem do que lhes basta. Eles que não se furtam, de modo algum, a devanear quando querem ou precisam.
E então fulano acorda, pensa que está ensinando de modo libertário, de fato e de direito, mas se esquece que, enquanto isso, os outros devaneiam que se libertarão. Fulano acorda, pensa de modo positivo, mas os outros persistem devaneando, já que, dizem, de libertário seu ensino nada tem. Fulano acorda e, de algum modo, o que pensava antes começa a lhe faltar. Fulano está confuso; sua convicção titubeia. Fulano acorda, respira a fundo e pensa que precisa prosseguir ensinando de modo libertário e confiante, o que talvez não mais lhe baste, já que insistem em dizer que ele carece de habilitação. Em serviço, dizem.
E então fulano acorda, pensa se talvez ainda quer ensinar, já que o convencem a se habilitar mais uma vez e sempre – e sem a garantia de um alvará. Fulano está confuso e cansado; sua convicção é pálida. Fulano acorda, pensa no que teria se passado, mas não pensa “muito obrigado”, como antes. Fulano está confuso, cansado e impaciente, pois nada parece lhe bastar. Mas é preciso prosseguir. Fulano acorda, pensa nos outros e seus alvarás, e capitula novamente. Mas capitula diferente dessa vez, já que carrega consigo a prova da experiência. A prova da experiência no lugar do devaneio de antes. Claro e escuro, pensa. Fulano acorda, pensa em sua experiência, o que, apesar de não mais lhe bastar, é tudo do que dispõe. Mais que pálida é sua convicção. Fulano acorda e pensa no tempo que escoa. Décadas se passaram. Fulano acorda e pensa que não quer mais ensinar. Então, fulano se dirige ao departamento de pessoal. É hora de se retirar.
Julio Groppa Aquino – Professor da Faculdade de Educação da USP
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