Escrita, imprensa, novas tecnologias: a humanidade nunca deixou de estocar sua memória. Até surgir o computador. Ele vai substituir nosso cérebro?
Publicado em 10/09/2011
Não conheço nenhum ser vivo de que não se possa dizer que estoca, trata, emite e recebe informação. Esse quádruplo característico é tão próprio aos seres vivos que ficaríamos tentados a definir a vida dessa maneira. No entanto, os contra-exemplos são abundantes, já que também não conheço nenhum objeto no mundo de que possamos dizer que estoque, trate, emita e receba informação. Esse quádruplo característico é então comum a todos os objetos do mundo, vivos ou inertes. Dito isso, tampouco conheço associação humana de que não possamos dizer novamente que estoca, trata, emite ou recebe informação.
Eis então uma característica comum às ciências humanas e exatas, de modo que, no dia em que inventamos um objeto que estoca, trata, emite ou recebe informação, refiro-me ao computador, inventamos uma ferramenta universal. Ele é universal porque imita o comportamento de todos os objetos desse mundo sobre o qual acabo de falar. Quando falei do quádruplo característico, tinha em mente um par entre um suporte e uma mensagem. Esse par tem uma história e peço que a analisem comigo.
Na época do estágio oral, nós nos reuníamos à noite para ouvir cantar os contadores gregos chamados
aedos
. Estes tinham naquela época uma memória considerável, pois eram capazes de contar as viagens de Ulisses em mais de 5.000 versos. Os contadores gregos tinham memória. A invenção da escrita representa uma primeira catástrofe, pois vem acompanhada então de uma perda de memória significativa.
Essa perda de memória nada tem a ver com a catástrofe da Renascença, quando a invenção da imprensa fez os contemporâneos perderem a memória. Temos provas nos textos de Montaigne em que ele afirma que prefere "uma cabeça bem feita a uma cabeça cheia". Ele quer simplesmente dizer que um historiador daquela época que quisesse trabalhar em sua disciplina era obrigado a saber de cor a totalidade da biblioteca, pois esta não era acessível alhures, mas apenas em algumas outras bibliotecas do mundo. Com a chegada da imprensa, basta conhecer o lugar em que está o livro. É uma catástrofe para a memória.
Por conseguinte, com a quase totalidade da informação posta à disposição hoje na tela, não precisamos mais de memória e não a temos mais, aliás. Cada vez que inventamos uma ferramenta, o organismo perde as funções que externa através da ferramenta. A escrita e a imprensa eram memórias. Hoje dispomos de memórias superiores a nossos precedentes: perdemos a memória subjetivamente, mas ela não é externada objetivamente. Eu chamo esse fenômeno de "ex-darwinismo da técnica". Há exteriorização dos objetos e esses objetos evoluem no lugar de nossos corpos.
Para terminar, falarei de todas as faculdades em geral. No século II de nossa era, um imperador romano decretou que os cristãos seriam perseguidos e executados em toda a face do Império. Uma noite, em Lutécia [Paris], os primeiros cristãos que acabavam de eleger um bispo chamado Denis, uniram-se numa sala. Quando eles escutavam seu bispo, a legião romana penetrou na sala, um centurião subiu pela escada externa e cortou a cabeça do bispo Denis, que rolou no chão.
Estupefação, pavor, mas milagre: o bispo Denis abaixa-se, pega a própria cabeça com as mãos e a apresenta a suas ovelhas enquanto os legionários, apavorados, fogem diante do que chamamos desde então do milagre de São Denis. Eis a história pela qual eu queria terminar. Quando, de manhã, vocês se sentarem diante de seus computadores, vocês terão diante de si sua cabeça, como a de São Denis. Com efeito, as faculdades de que acabo de lhes falar se encontram em sua cabeça: a memória, a imaginação, a razão, milhares de programas para finalizar operações que não se fariam sem sua cabeça. Entretanto, sua cabeça está objetivada. Você perdeu a cabeça. Para parodiar o título do romance de Robert Musil, eu chamaria com prazer o homem moderno de "o homem sem faculdades". Você perdeu essas faculdades, mas elas se encontram todas diante de vocês.
A questão que persiste é a seguinte: o que nos resta sobre o pescoço? Eu terminarei por uma palavra catastrófica: as novas tecnologias nos condenaram a nos tornar inteligentes. Já que temos o saber e as tecnologias, condenaram-nos a nos tornar inventivos, inteligentes, transparentes. A inventividade é tudo o que nos resta. A novidade é catastrófica para os ranzinzas, mas é entusiástica para as novas gerações, pois o trabalho intelectual é obrigado a ser inteligente e não repetitivo como o foi até agora.
*Tradução de Mônica Cristina Corrêa.
O texto acima é resultado de uma conferência proferida pelo filósofo francês em dezembro de 2007, cuja íntegra se encontra no sítio de internet
http://interstices.info/m-serres-lille
O último da série |
Em seus numerosos escritos, interessa-se, entre outras coisas, por história das ciências. Eleito para a Academia Francesa em 1990, é também comendador da Legião de Honra. Epistemólogo, preocupa-se com a educação e a difusão do saber e visa à popularização do conhecimento científico. O texto do filósofo Michel Serres encerra uma parceria iniciada em novembro de 2007, quando Educação começou a publicar, com exclusividade, artigos e reportagens produzidos pela revista francesa
A parceria se encerra em função da mudança do formato da publicação, que passou de revista mensal a suplemento, também mensal, no diário francês |