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O descascador de palavras

Poeta que louva o aparentemente insignificante, o mato-grossense Manoel de Barros desmonta os sentidos consagrados em busca da conjunção entre as belezas "letral" e natural

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

Ao longo do século 20, o poeta mato-grossense Manoel de Barros (1916- ) foi se tornando conhecido e apreciado. Distante das rodas literárias, contou, da década de 60 em diante, com “padrinhos” do naipe de Guimarães Rosa, Millôr Fernandes, Antônio Houaiss, que nele descobriram exímio artista da palavra. “Apadrinhamento” mais do que justo.

A obra de Manoel de Barros construiu-se em ritmo lento, necessário para desgrudar os versos de colarinhos, paramentos e suspensórios, como diz o poeta num dos seus livros. Em 1937, veio à luz o inaugural Poemas concebidos sem pecado. Esse nascimento imaculado anuncia um projeto: a busca apaixonada pelo despojamento e pela inocência. A inocência da natureza, das crianças e de todas as realidades destituídas de ostentação e solenidade.

Homem que “descasca palavras”, como se autodefine Manoel. Outra forma sua de limpar a linguagem da solenidade é usar bosta. Cultiva unicamente a poesia e a beleza, correndo o risco de parecer tonto/tantã:


A palavra garça em meu perceber é bela.
Não seja só pela elegância da ave.
Há também a beleza letral.
O corpo sônico da palavra
E o corpo níveo da ave
Se comungam.
Não sei se passo por tantã dizendo isso.
Olhando a garça-ave e a palavra garça
Sofro uma espécie de encantamento poético.

(em: Poemas rupestres, 2004)

O encantamento provocado pela conjunção de “beleza letral” e beleza natural encontra-se em todos os poe­mas de Barros. Seu objetivo poético resume-se ao essencial da criação. O poeta se identifica com aqueles que espiam o mundo de lado, e descobrem a matéria da poesia… e da vida.


Doutorado em formigas


À certa altura do livro O guardador de águas (1989), Barros reúne 14 poemas sob o título “Seis ou treze coisas que eu aprendi sozinho”. E o que sozinho aprendeu, agora nos ensina como quem apenas flagra imagens, capta manifestações, lançando frases definitivas que ultrapassam as seis ou treze coisas: mariposas pousam em osso de porco, o encorpado vôo do jaburu, o alto rumor dos peixes, a reza das águas, a lascívia da hera nas rachaduras das paredes, a lesma fodendo a pedra…

Aprende também que andar de costas tem “soberba desimportância científica”. Andar de costas é desconstruir o caminho, afastar-se das metas que todos almejam. Trata-se de avançar em direção ao começo. Aprender é desaprender: abrir mão de certezas rotineiras. Olhar de outro ponto de vista, de outro ângulo, fazendo outros movimentos. Desandar para recriar o caminho.

Ser poeta, desacostumar-se dos caminhos já caminhados. Sentir-se, portanto, um andarilho desencaminhado. Perdido no meio do mundo, tocando o nada, vendo-se ignorante, o poeta cumpre sua tarefa: “desexplicar”. Renunciando ao discurso das certezas já adquiridas, Manoel de Barros permite que a realidade se manifeste, tal como a noite “acende os vagalumes”.

Desconfia da ciência, ou quer colocá-la em seu lugar. Ela pode classificar e nomear animais, plantas, objetos, mas não sabe medir os encantos, não consegue calcular o arcano. Uma coisa é a informação da ciência, bem outra é o adivinhar poético. Uma coisa é a tecnologia triunfante, outra é a beleza inexplicável. E o poeta, orgulhoso com essa descoberta, sorri com a comparação entre a Usina e o cu da formiga:


Aliás, o cu de uma formiga é também muito mais
importante do que uma Usina Nuclear.

Formiga é quase nada. Nessa proximidade com o ínfimo reside a sua grandeza. Daí que o poeta, referindo-se ao seu, por assim dizer, currículo teológico, conclua o inesperado:


Não precisei de ler São Paulo, Santo Agostinho,
São Jerônimo, nem Tomás de Aquino, nem São
Francisco de Assis –
Para chegar a Deus.
Formigas me mostraram Ele.
(Eu tenho doutorado em formigas.)

             
(em: Ensaios fotográficos, 2000)


O desensinar que ensina


Há uma predileção pelo prefixo des-, em Manoel de Barros. Para desexplicar, recorre à desutilidade poética. Esta lhe faz experimentar o dessaber, com a ajuda dos desnomes. Quando afirma que é “formado em desencontros” (em: Livro sobre nada, 1996), faz o elogio do paradoxal, do contrastante, da antítese. O desacerto leva ao sentido. O “erro perfeito” que Beethoven foi simboliza a arte. É ainda desse livro um poema desconcertante:


Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna
mais curta (Só pra poder andar torto). Eu via
o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do
beco, torto e deserto… toc ploc toc ploc. Ele era
um destaque.


Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo
haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto
subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração
do Eu.

Desprofessor, Barros desinforma para nos retirar da f(ô)rma. Desformata para que possamos nos reconfigurar. Desmancha as paisagens habituais para aprendermos a ver. Desmoraliza a linguagem convencional para que reaprendamos a falar.

Uma didática poética, ou uma “desdidática”, enfatizando o valor do imprestável, a sensatez do despropósito, a nadeza que preenche, a desinventação das coisas para recriá-las:


Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar
ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à
disposição de ser uma begônia Ou uma gravanha.


Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.


(em: O livro das ignorãças, 1993)

Desconhecendo o pente, é possível reconhecer nele novas belezas. A ignorãça abre espaço para novas percepções, uma vez que “as coisas que não existem são mais bonitas”. A ignorãça é sabedoria inovadora. As despalavras desestruturam. Desestruturado, o aprendiz descobrirá sua profunda vocação.

Num poema autobiográfico do Livro das ignorãças, Manoel aparece com 13 anos confessando ao Padre Ezequiel seu prazer em fazer defeitos na frase. O Padre diz que aquilo é muito saudável:


O Padre falou ainda: Manoel, isso não é
doença,
pode muito que você carregue para o resto da
vida um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não
anda em
estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores
surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro pro-
fessor de
agramática.

O padre, com nome de profeta, descriminaliza o desvio, revelando nele o atalho para a maturidade, sem perder a infância.


Gabriel Perissé

é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP) (
www.perisse.com.br

).

Autor

Gabriel Perissé


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