Recursos usados por escritores para descrever seus personagens demonstram como menos vale mais na imaginação do leitor
Publicado em 10/09/2011
A prosa de ficção cria para o autor o desafio de descrever pessoas que não existem, para que o leitor possa criar uma imagem visual confortável que o acompanhe durante a leitura. Uma descrição pode se limitar ao básico:
"Surgiu na porta um homem de seus 50 anos, vestindo terno, com uma barba escura e óculos de grau".
Essa descrição deixa alguns espaços abertos. O homem era gordo ou magro? Branco ou preto? A barba era em que estilo? Os óculos eram modernos, antigos, com aro, sem aro? Não importa. Tendo as informações básicas para situar-se, o leitor compõe um rápido quadro mental, e segue em frente.
Autores do século 19 levavam páginas inteiras descrevendo cada personagem que surgia. A prosa substituía os retratos a óleo escrupulosamente detalhistas daquele tempo. Narradores modernos evitaram às vezes descrever seus personagens, dizendo deles apenas o nome e deixando a visualização a cargo do leitor.
Clássica
Uma descrição clássica procura nos dar não apenas uma imagem visual do rosto do personagem, mas um acesso ao seu espírito, como quando o Dr. Watson descreve assim um perigoso adversário de Sherlock Holmes (Conan Doyle, "O Cliente Ilustre", em Histórias de Sherlock Holmes):
"Seu rosto era de um trigueiro quase oriental, com uns grandes olhos negros e lânguidos que, como facilmente se compreende, exerciam irresistível fascinação nas mulheres. O cabelo e o bigode eram pretos como penas de corvo; o bigode era diminuto, terminando em ponta e cuidadosamente encerado. Tinha traços regulares e agradáveis, exceto a sua boca reta, de lábios delgados. Aquilo, sim, que era uma boca de assassino – uma fenda que se rasgava à flor da face, cruel, rude, comprimida, inexorável e terrível".
É o mesmo processo que encontramos noutra descrição que à primeira vista é totalmente diversa:
"Aurísio é um mameluco brancarano, cambota, anoso, asmático como um fole velho, e com supersenso de cor e casta" (Guimarães Rosa, "São Marcos", em Sagarana).
Primeiro, uma série de traços exteriores: "mameluco brancarano" (= mestiço com predominância do branco), "cambota" (= manco, ou de pernas tortas), "anoso" (= idoso), "asmático como um fole velho"… E em seguida uma revelação sobre a personalidade do indivíduo, que pressupõe (no presente caso) uma familiaridade prévia do narrador.
Ironia
Quando o autor quer ironizar o personagem, a riqueza de detalhes produz um efeito cumulativo, como nesta descrição de Victor Giudice (no conto "A Criação: Efemérides", em O Museu Darbot):
"Era um desses tipos singulares, com freqüência obrigatória nas vésperas de domingos e feriados. Magreza doentia e palidez cadavérica se cumpliciavam num corpo com vocação para espírito, coberto por um sudário branco de duas peças: calças de brim justíssimas e cardigã de algodão folgadíssimo, com motivos esotéricos bordados na altura do peito. Os cabelos, uma touca negra e lustrosa, concluíam a trajetória num coque arrematado por uma trama de fitas brancas e amarelas. Na orelha esquerda, um brinco de ouro com uma discreta incrustação de lápis-lazúli e, nos pés, um par de botas pretas. O ponto final ficava a cargo do bigode: fino, bem-tratado e com uma metade inteiramente branca. Zuleica apresentou a figura a Carlos Maria e Cassinha, sem dizer o nome, apenas o ofício: Professor de Astrologia Cármica".
Imagem inicial
Alguns autores ganharam fama pela sua capacidade de criar a imagem inicial de um personagem complexo com apenas uma meia dúzia de traços. Raymond Chandler, grande observador da fauna humana da Califórnia, EUA, é um mestre nesses flashes verbais, como em A Dama do Lago:
"Ela usava um terninho executivo cinza-metálico com uma blusa azul-escura e uma gravata masculina em tom mais claro. As bordas do lenço dobrado no bolso superior do casaco pareciam afiadas o bastante para fatiar um pão. Tinha um bracelete de corrente, e nenhuma outra jóia. Seu cabelo escuro estava repartido, caindo em ondas soltas mas planejadas. Sua pele era lisa, num tom de marfim; tinha sobrancelhas severas e olhos grandes e escuros, que davam a impressão de que poderiam ser mais calorosos no lugar certo e na hora adequada".
Traços masculinos e femininos se alternam, criando a impressão de uma "mulher fatal" complexa e perigosa, uma incógnita para o detetive e para o leitor. O romancista precisa descrever de modo a criar uma presença e sugerir um mistério, como o grande Guy de Maupassant faz à maneira clássica, adotando o ponto de vista de quem observa a distância uma pessoa desconhecida, em Drama Humilde:
"Teria no mínimo setenta anos, alta, seca, angulosa, com cabelos brancos enrolados em caracóis nas têmporas, de acordo com modas já passadas. Vestida como inglesa errante, despreocupada e grotescamente, como se vestem as pessoas indiferentes à própria aparência, ela comia uma omelete e bebia água. Tinha um aspecto singular, olhos inquietos, rosto de alguém a quem a vida maltratou. Involuntariamente a fitava, indagando comigo mesmo: ‘Quem será? Que espécie de vida terá essa mulher? Por que estará vagando sozinha por estas montanhas?’"
Contemporâneo
Escritores contemporâneos usam recursos mais sutis. Veja-se esta "descrição negativa" de Georges Perec no romance A vida: modo de usar:
"A senhora Nochère está agora com quarenta e quatro anos. É uma mulher baixinha, um tanto rechonchuda, loquaz e prestativa. Não se parece de forma alguma com a imagem que se costuma fazer das porteiras: não vocifera nem resmunga, não vitupera em altos brados contra os animais domésticos, não expulsa os vendedores importunos (o que, aliás, vários proprietários e inquilinos prefeririam que fizesse), não é servil nem cúpida, não fica o dia inteiro assistindo à televisão nem implica com aqueles que vêm trazer o lixo de manhã ou aos domingos ou deixam vasos de flores pendurados nas varandas".
Perec cria um retrato às avessas da personagem, um retrato por exclusão. Não nos diz desde logo o que ela é, e sim o que não é; com isto, torna-a invisivelmente real. O que é uma definição aceitável da arte de descrever gente que não existe.