Órfãos da cultura que deveriam ter, professores incapazes até de explicar o que fazem em sala de aula podem destruir uma escola
Publicado em 10/09/2011
Num dos mais negros períodos da sua história, a Ponte esteve integrada num chamado "agrupamento de escolas". Foi uma iniciativa desastrosa. Os professores da Ponte eram uma minoria, foi-se instalando o "achismo" nas reuniões, foi um regresso ao grau zero da reflexão.
Registrei os "acho que" de uma das reuniões. E, em apenas duas horas, contei 83: O que eu quero dizer é o seguinte. Então, é assim: portanto, pois. portanto, eu acho, quer dizer. O que eu acho, na minha opinião, é acho que deve ser assim, porque sempre foi assim. Quer dizer, eu acho que essa idéia é interessante.
"O que significa interessante?", perguntei à professora, mas ela não respondeu.
De surpresa em surpresa, apercebemo-nos de que os professores "achistas" – alguns já com mais de 30 anos de exercício da profissão – jamais haviam lido um livro e eram incapazes de alinhavar duas idéias seguidas, ou de explicar por que faziam o que faziam na sua sala de aula. Manifestavam total relutância ao estudo e abominavam qualquer esboço de reflexão.
Emocionado, um "achista" falava do último episódio da novela da noite, citando de memória títulos de novelas antigas e atores de que eu jamais ouvira falar. Os professores são bons conversadores, e eu poderia deixar que o animado interlúdio se prolongasse. Mas eu dispunha da prerrogativa de gerir o tempo dessa reunião e tentei colocar um ponto final naquele erudito debate novelístico. Propus que regressássemos ao domínio da pedagogia.
"Ó colega, deixe-se disso! Que coisa chata! A gente precisa espairecer!", resistiram.
Insisti. Pedi que conversássemos sobre referentes teóricos que enformavam as suas práticas. Os "achistas" responderam que "não precisavam de teorias para nada".
Não porque fosse indispensável conhecer tantos nomes de educadores quantos os dos atores de novela, mas porque é injusto desconhecer a herança que nos foi legada por muitos esforçados pedagogos, retorqui, defendendo que toda a prática está, explícita ou implicitamente, associada a uma teoria. De nada valeu a argumentação. Fiquei estarrecido, pois tomei consciência dos efeitos da longa e tenebrosa noite de uma ditadura, que deixou marcas indeléveis numa certa cultura profissional.
Numa outra reunião, foi proposta a análise de um texto do Perrenoud. Os "achistas" gastaram mais de uma hora a discutir "competências", com recurso ao mero senso comum pedagógico. Apercebi-me da perturbação dos professores da Ponte, cansados do empobrecimento do debate. E lancei uma pergunta: "Há mais de uma hora, que estou a ouvir falar de competências. Alguém quererá dizer o que entende por competência?" Resposta não houve. Só silêncio e olhares ameaçadores.
A dolorosa via-sacra acabou quando a Ponte se libertou do "agrupamento". Aprendemos com essa experiência que, entre culturas inconciliáveis, o diálogo é de surdos. Ou, como diria o Rui, não se pode amar quem não gosta da mesma canção.
Esses professores estiveram na Ponte, dentro da Ponte, devassando-a. Nada entenderam da Ponte. Usaram-na, quase a destruíram. Foram-se, mas o "achismo" ficou. Um "achismo" que hibernou e se manifestou, mais tarde. Mas essa é outra história.