O grande desafio nacional é descolonizar-se, encontrar a nossa identidade de pensamento e deixar de lado o sentimento generalizado de menos valia
Publicado em 10/09/2011
Volta e meia somos comparados com países do exterior, no que diz respeito às questões educacionais. Os avaliadores, com todos os números disponíves, afirmam que na Finlândia sim, existe um excelente sistema de ensino. Que na Coreia do Sul sim, investiram nas salas de aula! Que na China sim, sabem o que é formação docente! Somos comparados com Canadá, Japão, Nova Zelândia, Austrália, exemplos distantes que deveríamos seguir de perto! Somos os perdedores internacionais. Os retardatários. E nos sentimos humilhados, enfim, quando nos dizem que no Uruguai e no Chile os alunos têm melhor desempenho na leitura e na matemática do que os nossos. Somos líderes na economia dentro da América Latina, mas deficitários no campo educacional.
Ainda carregamos a sensação dos colonizados. Trazemos na alma a marca dos que estão sempre em desenvolvimento, sempre na metade do caminho. Ainda ficamos fascinados com os parâmetros que vêm de fora. Com as pesquisas realizadas nos Estados Unidos e na Europa. Os critérios baseados em experiências e sucessos estrangeiros nos parecem decisivos e inquestionáveis.
Leitura colonizada
Para verificar se esse complexo de colonizados persiste entre nós, vejamos nas listas dos mais vendidos que livros (de ficção e não ficção) têm recebido destaque entre nós recentemente. Há um Querido John, e não um Querido João. Há mais de dois anos compramos A cabana, de William Young, e muitos ainda querem saber o que existe lá dentro. Parece que a leitura preferida da maioria daqueles que têm dinheiro e tempo para ler gira em torno de nomes como Nicholas Sparks, Elizabeth Gilbert, James Hunter, Sherry Argov…
Nem sempre é assim, obviamente. No momento em que escrevo, padre Marcelo Rossi é um campeão de vendas com seu novo livro, Ágape (prefácio de Gabriel Chalita), leitura de cabeceira na casa de muitas professoras brasileiras. Outro autor nacional em evidência é o educador Mario Sergio Cortella, cujos textos estão sendo lidos e recomendados (o que é salutar) no âmbito empresarial.
A leitura colonizada é reflexo de nosso hábito de valorizar o conhecimento sobre o não brasileiro. O prestígio que dá estudar outros idiomas suplanta o dever de termos maior intimidade com nosso próprio idioma. Há quem torça o nariz quando ouve a provocação de Nelson Rodrigues, dizendo-se linguisticamente monogâmico por só conhecer e praticar a língua portuguesa.
Leitura colonizada, visão de mundo colonizada, não é de surpreeender que nos sintamos diminuídos quando percebemos sobre nós os olhos dos avaliadores externos.
Complexados, estamos sempre correndo "atrás do prejuízo", triste objetivo esse (o prejuízo) que nos restou perseguir, frase associada a outra, bem própria dos subalternos, "desculpe qualquer coisa!", proferida antes que o açoite nos atinja.
Educar à brasileira
Recomendo leitura e estudo de um livro decisivo para a nossa autocompreensão: Crítica da razão tupiniquim, do catarinense Roberto Gomes, publicado em 1977. Não constou nem consta dos livros mais vendidos, mas certamente (já chegou à 12ª edição) terá mais vida do que vendas. E pode nos tirar as vendas dos olhos e a trava da língua.
O livro trabalha a questão de uma filosofia genuinamente brasileira. Como pensar de modo brasileiro? Suas considerações são inspiradoras. Como educar de modo brasileiro? Pensemos na piada brasileira. Não a piada alienante. Ou a piada agressiva e zombeteira. Pensemos na piada que faz "cócegas no raciocínio", título de um livro de tiras e cartuns de um chargista adolescente, João Montanaro, que, embora muito jovem, já trabalha ombro a ombro com nomes importantes do humor jornalístico.
Aliás, só o fato de unir palavra tão séria, "razão", a adjetivo com uso tão pejorativo entre nós, "tupiniquim" – essa união já pode soar como uma forma de fazer piada e desprezar toda a tradição ocidental do pensamento. E não é bem assim. Trata-se apenas de encontrar nossos próprios atalhos. Nosso próprio jeito de fazer, escrever, ensinar… e avaliar.
Uma educação tupiniquim será uma educação marginal. Estará atenta ao avesso das coisas. E saberá valorizar o que permite diálogo e encontro com a nossa própria realidade.
Sem tanta preocupação em "assimilar" o que vem de fora. O que vem de fora será tratado com respeito. Com hospitalidade. Mas por que não virar do avesso o velho provérbio e afirmar que quem faz milagre, e milagre dos bons, é o santo de casa?
Estas palavras de Roberto Gomes podem estimular uma reflexão mais nossa, mais tupiniquim:
[…] Do ponto de vista de um pensar brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos ensinar do que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a Filosofia, como o samba, não se aprende no colégio.
E o que poderia a escola brasileira ensinar? Qual a contribuição da faculdade brasileira?
Em primeiro lugar, aprender a ser brasileiros. Muitos brasileiros no passado desejaram ser não brasileiros. Ainda hoje, entre nós, e entre os intelectuais de modo mais notório, aprova-se quem se apega a teóricos de fora. Quem vai estudar no exterior sempre volta mais sábio do que os pobres tupiniquins.
A razão tupiniquim não é xenófoba. Aliás, gosta muito de alimentar-se antropofagicamente de novos colonizadores. Nosso modo de educar deverá largar a mão da Mãe-Europa e do Tio-EUA. Andar com as próprias pernas e pensar por conta própria (e como poderíamos pensar por "conta alheia"?).
Educar à brasileira será tão legítimo quanto educar ao estilo coreano ou canadense ou finlandês etc., contanto que cada estilo se realize dentro de suas circunstâncias concretas. A condição necessária para que haja bons resultados educacionais em qualquer país é que em cada país as pessoas se deem conta de suas peculiaridades.
Além de aprender a ser brasileiros, precisamos (outra inspiração do livro de Roberto Gomes) inventar uma pedagogia que converse com o não pedagógico, com as nossas referências, com as nossas imagens e saberes: a música, a culinária, o futebol, a dança, a nossa farmacopeia, a roupa, a arquitetura, a rede (a de deitar, mas também a nossa internet!), a nossa tecnologia, a nossa ciência, o jeitinho, as gírias, a literatura, a telenovela…
Se não aceitarmos o desafio da originalidade, da autovalorização sem ilusões, estaremos condenados ao que Roberto Gomes chama de "globocolonização". Estaremos sempre na dependência da aprovação alheia. Na periferia envergonhada do mundo.
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Gabriel Perissé
(
www.perisse.com.br
)
é doutor em Filosofia da Educação (USP) e professor do Programa de Mestrado/Doutorado da Universidade Nove de Julho (SP)