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Quando o aluno “se acha”

A soberba, um dos sete pecados capitais, está presente na escola,onde desafia docentes e cria ambiente antipedagógico

Publicado em 10/09/2011

por Marcelo Morales e Fabiana Macedo

Uma garota ou um garoto munido de celular de última geração, ainda não disponível no mercado formal brasileiro, usando roupas e acessórios de grife, chega à escola em carro de luxo importado e acompanhado de seguranças, olha para o professor com ar olímpico e auto-suficiente, contesta sua autoridade, despreza seu papel pedagógico como se não tivesse nada a aprender e, quando confrontado, desafia: "Meu pai paga o seu salário".

Essa é uma manifestação típica da soberba, da arrogância, comportamento que, de acordo com Jorge Cláudio Ribeiro, professor da PUC/SP, carrega uma contradição. "O indivíduo arrogante pretende se sobrepor aos demais, quer ser único. No limite, quer que o outro não exista. No entanto, sua afirmação passa pelo outro, pois o ser humano precisa do ambiente social para ter retorno. O vaidoso pratica um auto-engano empobrecedor, pois quem legitima o valor é o outro", raciocina. O fato é que a soberba, um dos sete pecados capitais do catolicismo, era vista por Tomás de Aquino como um pecado tão grandioso que deveria ser tratado separadamente dos demais (ver texto nas págs. 28 e 29).


Vocalização difícil

No mundo terreno, a questão é delicada. Professores que experimentaram situações em que o aluno abusou do direito de ser arrogante preferem o anonimato. Temem represálias em seus locais de trabalho ou optam por evitar o embaraço da exposição pública. "É difícil para uma escola admitir que uma parcela grande de seus alunos é arrogante", diz um deles, com 25 anos de serviços prestados a um tradicional colégio paulistano. A situação é compartilhada por diversos docentes que dão aulas em instituições tradicionais, freqüentadas por jovens que cresceram em um mundo sem limites, muitas vezes em famílias desestruturadas, mas com poder aquisitivo altíssimo. "Esse jovem tem a tendência de tratar todo mundo como serviçal", lamenta.

As explicações para o fenômeno transcendem as razões socioeconômicas e passam pelo momento psicológico característico da adolescência. "É uma fase de transição, marcada pela contestação, que se transforma em rebeldia em algumas circunstâncias. Pode ser ostensiva e desafiadora ou obstinada e hostil. Uma forma dessa manifestação seria a conduta de que ‘não tenho o que aprender com você’, ou ‘para que serve isso’, ou ainda a negação pura e simples: ‘não vale a pena o esforço, faço o que quero’. O comportamento varia entre respostas mal-educadas, conversar, sair e entrar no meio da aula, distrair-se com outro livro, celular ou iPod", explica a psicóloga Liliana Liviano Wahba, também professora da PUC/SP.

Mas há casos que vão além da superação de uma etapa complexa na vida. "Existem jovens que não precisam se preocupar com sustento e permanecem fixados em uma dependência infantil, sem tolerar frustração, sem limites e com senso de auto-estima precário, ainda que aparentem ser fortes e poderosos", analisa Liliana. Se a insolência se manifesta em disciplinas em que os alunos têm dificuldade em aprender, eleva-se quando a aula é sobre um tema que dominam. A informática é um campo de conhecimento recente e acessível, prato cheio para jovens que passam o dia trancados diante


"O arrogante quer se sobrepor aos demais, mas sua afirmação passa pelo outro", alerta Jorge Ribeiro, da PUC/SP

do computador, fuçando programas, novidades, trocando informações com amigos de todo o mundo em comunidades digitais, blogs e sítios especializados de internet.

"O professor passa o dia dando e preparando aulas, não tem o mesmo tempo para se atualizar. Então lido freqüentemente com a situação de o aluno conhecer mais sobre o software do que o professor. A gente acorda sabendo menos todo dia", conforma-se a professora de informática Valdenice Minatelli, coordenadora do departamento de tecnologia do Colégio Dante Alighieri.

Nessa situação, é preciso que o professor combine humildade, admitindo que ninguém está a par de tudo, com uma postura de parceria com o aluno, o que evita previsíveis atitudes desafiadoras por parte dos ocupantes dos bancos escolares. "A gente procura mostrar que eles têm conhecimento, sim, mas que não é um conhecimento aplicado, é preciso aprender o que fazer com ele", diz.


O estilo "consumidor"


Os professores que dão aula de matérias que não constam do cardápio do vestibular, como a filosofia, também são vítimas da prepotência. Renata Aspis, que leciona a disciplina há três anos no Colégio Santa Cruz, em São Paulo, relata experiências que teve em outra escola, menos tradicional mas também dirigida à classe alta: "Havia alunos que encaravam as aulas como inúteis, como se eu fosse um ser estranho, desimportante, que os estivesse incomodando no mau sentido, com algo que não servisse para provocar reflexão", lembra.

Para ela, essa situação decorre do fato de que muitas escolas que passaram a ser administradas seguindo princípios


"A gente acorda sabendo menos todo dia", filosofia Valdenice Minatelli, do Colégio Dante Alighieri

empresariais enxergam o aluno como cliente e querem agradá-lo, renunciando a seus princípios pedagógicos. Na confortável posição daquele que demanda, o aluno se sente à vontade para exigir e adotar comportamentos que destoam do que se imagina ser um ambiente pedagógico adequado. "Essa lógica na educação é um problema nacional", dispara Renata.

Maria José Zampirolo, coordenadora de matemática do Colégio Rio Branco, onde trabalha há 17 anos, é uma espécie de contraponto a esse sentimento quase generalizado. "Em meus 27 anos de magistério, nunca passei por uma situação desse tipo." Para ela, hoje o aluno é diferente daquele do início de sua carreira. É mais participativo e se posiciona mais. "Isso faz com que o professor precise estar mais preparado, pois será questionado de forma mais aguda. Mas não significa que o aluno seja irreverente ou conteste a hierarquia", diz.

Maria José credita não ter vivido esses problemas à participação ativa da família na educação dos filhos e ao diálogo com os estudantes. "Deixamos claro que o trabalho da escola é pelo aluno e não para ele. Trata-se de uma parceria. Mas é preciso que se saiba que ele não está comprando nada na escola", ressalta.

Eliana Pereira Aun, diretora do Colégio Dumont Villares, prefere atribuir esse tipo de comportamento do aluno a questões morais que a sociedade enfrenta. Para ela, é natural que o educador se depare com a soberba, pois, em função da intensidade da relação e do tempo que passa com os jovens, se defronta com toda gama de atitudes. "Desponta um caráter narcisista, hedonista, que dificulta a maturação dos sentimentos. As manifestações de arrogância não consideram o outro, adulto ou colegas. Quando o aluno crê que domina o conhecimento de antemão ou mostra indiferença em relação à competência do outro, a aprendizagem sai prejudicada."

As conseqüências da soberba para o processo de aprendizagem, aliás, são danosas. Quando o aluno julga que já sabe ou não precisa saber, torna-se preguiçoso. "É importante que o jovem tenha consciência de que determinada qualidade natural em um âmbito não será automaticamente transferida para outro. O garoto bom de bola não repetirá necessariamente esse desempenho em matemática", explica Jorge Cláudio Ribeiro, da PUC-SP.

O perfil preferencial da vítima da arrogância é o professor mais jovem, inexperiente ou com pouco tempo de cadeira em determinada escola. O aluno se sente mais à vontade para desafiá-lo. "Muitos acabam recusando propostas de emprego vantajosas economicamente para não ter de reconstruir sua reputação em outra escola. Preferem continuar desfrutando o respeito em sala de aula", explica o professor que não quis se identificar.


Distinção etária

Para Quézia Bombonatto, da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), é preciso distinguir as faixas etárias. "Nas crianças de até 13 anos, é difícil identificar a soberba, que tem mais a ver com a onipotência do adolescente." A arrogância, explica, está ligada ao fato de muitos adolescentes não terem maturidade para lidar com a frustração do não-saber. Por isso, os alunos discriminam colegas que têm bom desempenho escolar. "O rótulo de nerd nada mais é do que uma forma de tentar minimizar a produção dos jovens que vão bem na escola. Ser bom aluno é renunciar à popularidade", acredita.

Para a psicóloga Liliana Wahba, a recusa em aceitar o professor como modelo representa um protesto. Para ela, entre os adolescentes acostumados a ter o que desejam sem resistir à frustração, o protesto passa despercebido, pois parece refletir a sensação de poder tudo, de não ter limites. Mas a situação denota uma falta em alguma área, que, reqüentemente, é afetiva. "É o caso típico de pais que mimam com bens materiais, mas são pouco presentes", conclui. 

E ao professor e à escola, o que resta fazer? Para Valdenice, do Dante Alighieri, a escola deve empregar meios educacionais criativos para permitir que se dê vazão à necessidade de auto-afirmação e de contestação de modo construtivo, por meio de debates, por exemplo. Jorge Ribeiro defende uma receita que mistura humor, "para desarmar o soberbo", e paciência. "A arrogância é danosa no momento atual, pois a vida anda muito complexa, exige muitas interações e não é possível evoluir isolado."


O pecado de querer ser Deus


Destaque entre os sete pecados capitais, a soberba foi considerada por Tomás de Aquino (1225-1274) como um pecado supracapital, maior do que os outros, porque estaria na gênese dos restantes. Sua origem seria o ato de Adão ao provar o fruto proibido, na ânsia de querer ser Deus, o que foi recentemente reforçado pelo papa Bento 16: "A grande tentação dos soberbos é querer ser como Deus, juiz do bem e do mal". Oposta à humildade, a palavra soberba vem do latim superbia e tem como sinônimos arrogância, presunção, altivez, orgulho, sobrançaria.

Fora do campo religioso, a soberba se manifesta nas pessoas como um desejo desmedido de grandeza, de se encontrar acima do certo e do errado, de considerar-se superior. Uma época, como a atual, de culto às celebridades, desvario consumista e ostentação como a atual fornece o caldo de cultura perfeito para manifestações desse tipo de comportamento, testemunhado cotidianamente ao vivo ou nos meios de comunicação. O acostamento de estradas congestionadas na volta de feriados prolongados, por exemplo, é palco de demonstrações de soberba, tomado por motoristas que se julgam acima do bem, do mal e das multas.

Já a recente história brasileira tem ao menos dois casos típicos de soberba. O mais próximo deu-se no início dos anos 90, quando o principal cargo da República foi ocupado por um homem que gostava de exibir seus dotes esportivos em jet skis. Pressionado politicamente, mas excessivamente confiante, convocou a população a vestir verde-e-amarelo para demonstrar apoio cívico a seu governo. Muita gente trajou luto em resposta, jovens pintaram o rosto e o presidente acabou por renunciar. Outro episódio memorável data do início dos anos 60, quando Jânio Quadros renunciou pensando em retornar mais poderoso nos braços do povo e deu-se mal, acabou destronado e só voltou à política décadas depois. Nos dois casos, pode-se conjecturar que ao "pecado" sobreveio a punição.

No campo da arte e da cultura, a soberba também está presente, como uma inspiração poderosa: recentemente, no Brasil, em uma coleção dedicada aos sete pecados capitais, o escritor e jornalista argentino Tomás Eloy Martinez publicou O vôo da rainha, cujo o protagonista Camargo "brinca de ser Deus". Entre os principais textos da literatura mundial, O retrato de Dorian Gray revela no século 19 uma Inglaterra aristocrática e hedonista, em que o personagem que dá título à obra deseja eternizar sua beleza, o que não deixa de ser uma aspiração ao divino, uma manifestação da soberba. Filmes e peças de teatro também já tiveram o orgulho que não se contém, a auto-suficiência, como musa inspiradora. Orson Welles tratou do tema em Magnificent Ambersons (1942), traduzido no Brasil com o título de… Soberba! No filme, uma típica manifestação de arrogância, a  classista: a diferença de nível social impede o casamento de dois jovens, que se reencontrarão anos mais tarde.

Autor

Marcelo Morales e Fabiana Macedo


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