Classe C passa a ser maioria nas escolas particulares e mostra que a imagem do ensino público não satisfaz aqueles que ascendem socialmente
Publicado em 10/09/2011
Como os filhos de Alessandra, mais de 3,7 milhões de crianças e adolescentes entre zero e 14 anos oriundos de famílias das classes C, D e E estão matriculados em escolas particulares no Brasil. No total, esses estabelecimentos contam com 5,5 milhões de alunos, o que significa que as crianças de menor renda já são maioria nas instituições particulares, segundo dados da empresa Data Popular, cruzados com informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) 2007. Crianças e jovens da classe C já são responsáveis por 49,2% das matrículas – as classes D e E respondem por 19,1% e 0,6%, respectivamente.
Para definir a classe C, o Data Popular leva em conta uma faixa de renda familiar que varia entre cinco e 10 salários mínimos (em valores atuais, de R$ 1.530 a R$ 5.100). As classes A e B são aquelas com renda familiar superior a dez salários mínimos e as classes D e E correspondem a famílias com ganhos mensais entre um e três salários mínimos. Ainda segundo o Data Popular, a classe C corresponde a 50% da população brasileira, enquanto as classes A e B somam 10,5% e as D e E, 39,5%. A Fundação Getulio Vargas (FGV) apresenta números semelhantes para ilustrar o crescimento da classe C: essa população passou de 42,2% dos brasileiros em 2004 para 51,8% em 2008 – um aumento de quase dez pontos percentuais num período em que a "classe alta" cresceu quatro pontos.
Para o diretor do Data Popular, Renato Meirelles, essa predominância da classe C nas salas de aula particulares é um retrato nítido das mudanças sociais e econômicas que levaram a um aumento do poder de consumo das classes mais baixas. "O principal fator é a melhora da renda das classes C, D e E, que passaram a investir em itens tecnológicos, casa própria e na educação. Para uma família de menor renda, a educação é vista como um investimento. Não existe previdência privada melhor do que investir na educação dos filhos", afirma. Aliado a esse raciocínio, Meirelles diz que as famílias de menor renda também compartilham de uma "percepção" de que os colégios particulares, de modo geral, oferecem melhores condições que os públicos.
Foi esse o pensamento de Alessandra ao decidir matricular os três filhos em escolas particulares. Além do caçula Kauã, o mais velho, Paulo Diogo, 13 anos, hoje no 9º ano, estudou quase todos os anos em colégios particulares. O filho do meio, Guilherme Augusto, 10 anos, estudou até a 4ª série em uma escola modelo da prefeitura no bairro. Neste ano, a partir da 5ª série, a mãe decidiu transferi-lo para uma particular. "O problema é que os professores dessa série em diante começam a faltar muito, vários pais já mudaram os filhos de escola", diz Alessandra.
Qualidade e segurança
Outras questões que ela aponta são a qualidade do ensino e a segurança na escola. Alessandra acredita que, em uma escola particular, a vigilância é maior para evitar o contato dos adolescentes com drogas e com a violência. Segundo ela, a maioria dos pais e mães da vizinhança tem a mesma opinião: "Aqueles que têm condição de pagar, mesmo que seja uma mais em conta, dão prioridade (para matricular o filho em uma particular)". No bairro, embora situado na periferia da cidade, é possível encontrar escolas que cobram mensalidades de até R$ 600. Do mesmo modo, afirma Meirelles, já é possível observar a migração de professores efetivos das redes públicas para os colégios particulares. "Esse professor (efetivo da rede pública) vai receber salários melhores em colégios voltados às classes A e B", diz o diretor do Data Popular.
Outra característica observada nas famílias de menor renda é a participação cada vez maior da mãe na composição da renda familiar – hoje, assim como na casa de Alessandra, 33% dos domicílios são chefiados por mulheres. De acordo com Meirelles, isso contribui para que a opinião da mãe seja fundamental na decisão de matricular os filhos em uma escola particular. "Ela, como gestora do orçamento, diz que vale o sacrifício", aponta. Além disso, a escolaridade da mulher brasileira já superou a do homem. Em média, as mulheres costumam estudar 7,2 anos, contra 6,9 dos homens, segundo a Pnad de 2008. Mesmo assim, os motivos que a mãe leva em conta na escolha do colégio são diferentes de acordo com a faixa de renda. "A mãe da classe A está mais preocupada com a qualidade do ensino e os métodos pedagógicos utilizados. Já a da classe C leva mais em conta a estrutura física", afirma.
Os colégios voltados para as famílias de menor renda também mantêm uma faixa de preços com pouca variação – e costumam oferecer facilidades no pagamento. Segundo Meirelles, nas escolas com foco na classe C que atendem crianças de zero a 6 anos, a média de preços fica entre R$ 49 e R$ 85 mensais. Já para os alunos de 6 a 14 anos, 70% das mensalidades são de até R$ 150, com um teto próximo aos R$ 200. Se por um lado essa decisão de matricular os filhos em uma escola privada está cada vez mais disseminada nas camadas populares, nem sempre é possível encontrar opções em regiões mais afastadas dos centros das cidades ou mesmo em municípios pequenos. "A concentração de escolas particulares está relacionada ao tamanho e à riqueza da cidade", aponta Meirelles.
Comunitárias
A popularização de escolas particulares voltadas para o público de menor renda também se deve, em grande parte, à disseminação e facilidade de acesso dos chamados sistemas de ensino, que permitem a um estabelecimento distante dos grandes centros ou localizado em regiões afastadas trabalhar, pelo menos em tese, com as mesmas apostilas e o material pedagógico semelhante ao de uma escola de "grife". Nos bairros periféricos de cidades de médio e grande porte já é comum encontrar diversas opções de escolas de idiomas e informática, o que mostra que as camadas mais baixas estão em busca também de aprendizado específico, fora da sala de aula regular.
Kauã e os dois irmãos, que estão matriculados em uma escola particular "popular" |
As escolas comunitárias ou ligadas a igrejas, sem fins lucrativos, também contribuem para a presença cada vez maior de alunos de baixa renda nos bancos de escolas privadas. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a penetração das grandes redes de ensino ainda é baixa, e a escola particular é uma realidade para crianças e adolescentes das classes C, D e E já há muito tempo. De acordo com o presidente do Sindicato do Ensino Privado do Estado (Sinepe-RS), Osvino Toillier, os gaúchos têm um "forte histórico" de escolas comunitárias, um legado dos imigrantes italianos e alemães da época do Estado Novo. "As escolas são de comunidades civis ou religiosas, não pertencem a ninguém. Elas têm o compromisso do acolhimento de todas as classes sociais", afirma.
De acordo com Toillier, isso fez com que as escolas comunitárias ou confessionais estivessem presentes nas regiões mais carentes já há algum tempo. Mesmo assim, segundo dados do sindicato, cerca de 8% dos alunos da Educação Básica gaúcha estão em escolas privadas – são cerca de 180 mil para um universo de 2,3 milhões de estudantes. No Brasil, esse índice está em torno de 13%. Para Toillier, essa diferença se deve a uma certa resistência do mercado gaúcho em relação à chegada de grandes redes de ensino. "Não vemos esse setor como um espaço de investimento, de negócios. Nosso objetivo é o compromisso com a educação", afirma. Segundo ele, hoje o principal concorrente das particulares é o ensino municipal.
Mesmo assim, o presidente do sindicato observa uma preocupação cada vez maior das famílias de menor renda em relação a algumas questões em que o ensino privado leva vantagem, pelo menos na "imagem" que passa para a população, como a ausência de greve e a segurança. A melhor qualidade do ensino também é uma expectativa da classe C, segundo Toillier, e difere do que esperam os pais das classes mais altas. "As classes A e B olham para uma certa sofisticação, não procuram só o projeto pedagógico, mas também escolas que oferecem intercâmbio e ensino bilíngue. A classe C espera mais qualidade (que a pública)", compara.
Marketing do privado
Apesar de indicar uma inclinação das camadas mais populares a escolarizar seus filhos com mais qualidade, essa predominância de famílias de menor renda recorrendo a instituições particulares pode indicar que a origem desse fenômeno está na incapacidade do Estado em manter serviços básicos. Essa é a opinião da professora Branca Jurema Ponce, do programa de pós-graduação em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em políticas públicas na área educacional. "O país vem sofrendo privatização em todos os setores, até nas coisas mais básicas, como saúde e educação. Hoje há um marketing de que o privado é melhor que o público", diz.
De acordo com a professora, existem iniciativas interessantes em algumas redes públicas, mas elas se restringem a iniciativas pontuais. "É preciso entender a educação como um bem público. O grande investimento em políticas públicas seria um esforço coletivo para ampliar a educação de qualidade", afirma Branca. Para ilustrar essa questão, ela cita a municipalização do ensino fundamental, que fez com que muitas redes municipais – pequenas e sem preparação – fossem impelidas a assumir a organização dos currículos sem a discussão necessária. "Com isso, os municípios acabaram preferindo comprar sistemas de ensino prontos, que não preveem a diversidade de cada rede." Por outro lado, a busca das famílias de baixa renda por qualidade na educação mostra um avanço. "Hoje até a população mais carente sabe que precisa escolarizar seus filhos. Pelo menos a ideia de que a educação é um direito já está democratizada", observa.