Rio de Janeiro reúne o maior número de escolas fundadas antes da República, quando a educação pública deu os primeiros passos no Brasil
Publicado em 10/09/2011
Fachada do Colégio Pedro II, Unidade Centro, no Rio de Janeiro: fundado em 1937, edifício foi reformado em 1874, quando ganhou um segundo andar, com pórticos e embasamento em cantaria. O telhado foi recoberto por placas de ardósia e telhas francesas |
No dia de seu 12º aniversário, D. Pedro II recebeu uma homenagem que se revelou um presente para a população do Município da Corte – e para os moradores do Estado do Rio de Janeiro até os dias atuais. Fundado em 12 de dezembro de 1837, o Imperial Collegio Pedro Segundo adotou o lema pedagógico pauca sed bona (pouco, mas bom). Hoje, prestes a completar 170 anos, o tradicionalíssimo Colégio Pedro II tem como maior desafio aliar educação de massa a qualidade de ensino. Com 12 unidades escolares e quase 12 mil alunos, ainda é considerado uma das melhores instituições públicas de ensino do país, uma das poucas remanescentes dos tempos do Império.
Como é comum quando se trata da questão da preservação da memória, não se sabe ao certo quantos são os colégios remanescentes do período imperial no Brasil. Nem mesmo a Secretaria da Educação do Estado do Rio de Janeiro, unidade da federação cujo legado em termos de patrimônio histórico é disparado o maior, sabe informar ao certo quantas são as escolas ainda em funcionamento. Além do Pedro II, é certo que haja ao menos outras quatro: o Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (Iserj), o Colégio João Alfredo, o Colégio Militar do Rio de Janeiro e o Colégio Santa Isabel, de Petrópolis. A falta de registros mais precisos é um empecilho para que se tenha mais clareza sobre a história da educação no período.
Segundo a historiadora Heloísa Helena Meirelles, embora a Constituição de 1824 assegurasse a gratuidade da instrução primária a todos os cidadãos, não havia como suprir a falta de professores. "Trabalhava-se com o método Lancaster, ou do ensino mútuo, em que um aluno treinado [decurião, um estudante mais adiantado que atua como um professor] ensinava a um grupo de dez alunos [decúria], sob a rígida vigilância de um inspetor", explica a professora, que fundou em 2005 o Centro de Memória Institucional do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (Iserj), outra das escolas criadas no Império.
Em 1834, um ato adicional à Constituição dispôs que as províncias passassem a ser responsáveis pela administração do ensino primário e secundário – graças a isso, surgiu a primeira Escola Normal do país em Niterói, no ano seguinte. Mas a verba destinada às províncias era pouca e o quadro do ensino elementar continuou insuficiente para atender à demanda. O secundário beneficiava apenas diminuta parcela da população que buscava o ensino superior. A historiadora acrescenta que foram criadas condições de expansão da rede privada, numa tentativa de suprir as lacunas do ensino público provincial.
O salão de leitura do Pedro II, construído em 1875, é um dos espaços mais preservados do colégio. O piso, com tacos em formato de mosaico, os lustres, o mobiliário e o forro permanecem iguais |
"A proposta pedagógica do Império, se é que podemos chamar assim a um emaranhado de diretrizes, seguia correntes européias, isto é, era um ensino propedêutico em que o conhecimento era a mola-mestra", diz Heloísa. O aluno devia aprender com o professor que detinha (e escolhia) o conhecimento a ser transmitido. Esse ensino era positivista, fruto de influências iluministas recebidas da França.
Não havia turmas mistas: moças e rapazes estudavam em escolas distintas. O conteúdo também era diferenciado. Segundo a Coleção Brasiliana, volumes de "A Instrução e o Império", de Primitivo Moacyr, o nível de ensino nas escolas femininas era muito pouco elevado, privilegiando-se disciplinas como francês e música. Além disso, a maioria das jovens era obrigada a largar os estudos aos 13 ou 14 anos, ainda no ensino elementar, quando os pais consideravam seus estudos concluídos.
O acervo documental do Nudom inclui o primeiro livro de professores do Pedro II. Nele, figura o nome do escritor Joaquim Manuel de Macedo, quando de sua nomeação, em 1849, como professor de Geografia e História Antiga |
Primitivo Moacyr revela que em 1857 o ensino secundário no Município da Corte era oferecido por 83 colégios e escolas particulares: 46 para rapazes (2.880 alunos) e 37 para moças (1.535 alunas). Somando-se o número de matrículas nos estabelecimentos públicos e privados havia quase seis mil alunos, o que representava um aumento de 1.711 jovens cursando o ensino secundário a mais do que em 1855. Esse é um dos raros registros estatísticos sobre a educação naquela época.
Grande referência
Primeiro colégio de instrução secundária oficial no Brasil, o Pedro II abriu suas portas num prédio imponente de estilo neoclássico, situado na antiga Rua Larga (atual Avenida Marechal Floriano), no centro do Rio – construído em 1733, o casarão já fora endereço do Abrigo dos Órfãos de São Pedro e do Seminário de São Joaquim, e tombado como Patrimônio Histórico em 1983. Seu objetivo era servir de modelo de educação no Município da Corte e para os liceus e estabelecimentos particulares de ensino em todas as províncias. "Ele conferia o grau de bacharel em Letras a seus formandos, um passaporte direto para o curso superior", conta Geraldo Pinto Vieira, aluno eminente e professor de história do Pedro II durante 33 anos.
Como o Colégio Militar e a Escola Normal da Corte (atual Iserj), o Pedro II se distinguia ainda por possuir uma cátedra – grupo de professores altamente especializados, que formavam uma congregação e se reuniam para estabelecer os programas e metodologias a serem seguidos por outras escolas no país. Eram, por assim dizer, os doutores da época.
Até o início do século 20, os alunos do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro não tinham acesso a essa área. Entrada e saída eram feitas através de corredores mais estreitos e escuros |
Nesses quase 170 anos de existência, o Pedro II teve em seu corpo docente profissionais renomados, como Justiniano José da Rocha, Euclides da Cunha, José Veríssimo, Joaquim Manuel de Macedo e Antônio Gonçalves Dias. Já entre os alunos, o Barão do Rio Branco, Manuel Bandeira, Afonso Arinos de Melo Franco, Mário Lago e os futuros presidentes da República Washington Luís, Rodrigues Alves e Hermes da Fonseca. Da família imperial, apenas o neto de D. Pedro II, príncipe D. Pedro de Alcântara, freqüentou seus bancos escolares.
Em pleno século 21, a maioria dos jovens que circula nas salas, corredores e dois pátios internos arborizados daquele casarão, além dos prédios das outras unidades do colégio, desconhece a riqueza da história da instituição em que estuda. Das instalações originais na Rua Larga ainda se pode apreciar o salão nobre, atualmente em fase de restauração, com cinco painéis no teto, trabalhado em folhas de ouro e gesso de estuque, e um trono imperial; a sala de leitura com seus lustres imensos e paredes semi-revestidas em madeira; a fachada do primeiro pavimento revestida em pedra, e um ou outro mobiliário à mostra num pequeno museu. Tombado como patrimônio histórico em 1983, o prédio requer mais atenção para sua preservação, mas sofre com a também tradicional (nesse caso, a tradição não é nenhum motivo de orgulho) falta de verbas para a execução das obras.
Já o acervo documental, bibliográfico e iconográfico do colégio sofre menos riscos de se perder desde a criação do Núcleo de Documentação e Memória, em 1995. Iniciativa do professor Geraldo, o Nudom reúne entre suas relíquias atas da Congregação, livros de matrículas dos alunos – incluindo o primeiro, datado de 1838 – e os rigorosos programas de ensino. Numa pesquisa, descobre-se, por exemplo, que a primeira professora do colégio foi Maria da Glória Ribeiro Moss, contratada em 1934 para lecionar química. Já as cinco primeiras alunas ingressaram no colégio em 1883, mas dois anos depois acabaram transferidas para a Escola Normal e o Liceu de Artes e Ofícios – só a partir de 1926, as mulheres tiveram direito a freqüentar o curso completo.
Na parte pedagógica, o colégio não escapou ileso às reformas educacionais das últimas décadas. "Na década de 40, os professores acompanhavam as turmas, o que permitia uma seqüência no aprendizado. Eu tive o mesmo professor de história por três anos, e trabalhei como assistente dele anos depois", lembra o professor. Ele também questiona o nível atual dos livros didáticos. "Há uma preocupação maior com a estética. Os alunos são capazes de nadar 100 metros, mas só se cobra deles 50 metros, então se acomodam", acrescenta. Ele ingressou na turma de 1949 e nunca mais se desligou do colégio: após concluir o curso, trabalhou como funcionário até graduar-se em história, prestou concurso para professor e, ao se aposentar, passou a trabalhar como voluntário para o resgate e a preservação de memória da instituição.
Desafios atuais
A fachada, em estilo colonial, do Colégio João Alfredo, fundado em 1875; |
Autarquia federal, o Pedro II hoje atende alunos desde as classes de alfabetização (CA) até o ensino médio e suas vagas são bastante concorridas. Para ingresso nas CA é feito um sorteio. Nos primeiros anos do ensino fundamental e do médio, os candidatos são submetidos a uma prova. "Desde 2002, reservamos 50% das vagas para alunos que vêm de escolas públicas. É um regime de cotas mais inteligente", diz o professor Flávio Norte, diretor da Unidade Centro.
Entre as particularidades da atual política de ensino adotada pelo Pedro II está a implantação de um apoio permanente aos alunos, além da carga horária normal. Para isso, desde o início de 2007, os professores do colégio cumprem mais duas horas de aula e, nesse período, atendem os jovens para esclarecimentos de dúvidas curriculares. Também há um acompanhamento especial aos alunos reprovados, com a participação das famílias, numa tentativa de evitar a jubilação. "Caso ocorra a dupla repetência numa mesma série, não renovamos a matrícula. O aluno é transferido. É preciso oferecer a vaga para um aluno que realmente tenha interesse em estudar", explica Flávio Norte. Em 2006, dos 900 alunos na Unidade Centro, nove foram jubilados.
Professores da Corte
Foi justamente nas instalações do Colégio Pedro II que a Escola Normal da Corte começou a funcionar em 1880. Depois de oito anos, ela ocupou outras escolas públicas até mudar em definitivo, em 1930, para um prédio em estilo neoclássico colonial, construído num terreno de mais de 18 mil m2, na Rua Mariz e Barros 273, na Tijuca (zona norte).
Em seu decreto de criação, o objetivo da escola era claro: a formação de professores, com ensino gratuito, para ambos os sexos (em unidades separadas), e compreendendo dois cursos – de ciências e letras e de artes. O programa dos cursos não era brincadeira. Os alunos de ciências e letras tinham disciplinas como francês, incluindo a análise e tradução de autores clássicos e modernos; matemáticas elementares; elementos de mecânica e astronomia; ciências físicas; ciências biológicas; lógica e direito natural e público; pedagogia e metodologia. Seus professores eram selecionados por meio de concurso, com apresentação de tese, com defesa oral e escrita, prática em ciências físicas e biológicas e em metodologia, e argüição pelos examinadores, como relata o livro História do Instituto de Educação, de Alfredo Balthazar da Silveira.
Rumo à Escola Nova
Segundo a professora Heloísa, a Escola Normal da Corte sempre foi de vanguarda. Vanguarda que resultou na criação do Pedagogium, um setor da escola que produzia artigos acadêmicos difundidos para outras instituições. Ou na abertura de um Museu de História Natural, usado para a prática da interdisciplinaridade, que está em processo de restauração, após anos de abandono. Ou ainda na implantação de laboratórios de química, física e de psicologia (o primeiro do país), entre outros projetos pedagógicos. "O movimento escolanovista foi implementado por completo aqui, a partir dos anos 30, quando se cria o Instituto de Educação, por iniciativa de educadores como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho", conta ela.
"A TV educativa no Brasil também teve seu início nessa escola, com a produção de 50 filmes por um grupo de normalistas, que foram veiculados na antiga TV Continental, na década de 60", afirma a historiadora, lamentando que hoje o conhecimento seja trabalhado de forma fragmentada e superficial. "Agora quem determina o programa de ensino são as editoras e os professores se baseiam no índice dos livros didáticos", lamenta Heloísa, lembrando os tempos de cátedra da escola.
A transferência da escola para o prédio da Mariz e Barros também poderia ser classificada como um movimento de vanguarda. Heloísa conta que havia boatos de que os prédios desocupados seriam utilizados para aquartelamento de tropas getulistas.
Temerosos de perder o prédio – projetado especialmente para a escola, já obedecendo à sua proposta pedagógica de uma educação renovada -, alunos, funcionários e professores colocaram mãos à obra. "Eles fizeram a mudança em lombos de burro. Pouca gente sabe, mas até hoje a escola não foi inaugurada oficialmente", diz Heloísa, que foi aluna do professor Geraldo Vieira, no Colégio Pedro II.
No seu corpo docente, o Iserj, que no período de 1935 a 1939 abrigou a recém-criada Universidade do Distrito Federal (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), contou com Cecília Meirelles, Julio César de Mello e Souza (Malba Tahan), Osório Duque Estrada, Graciliano Ramos e Cândido Portinari (que teria feito os desenhos de corujas em telhas de porcelana que ornamentam a sacada do prédio principal). Por sua vez, Marieta Severo, Tonia Carrero, Zagallo, Cesar Maia e Gilberto Braga (que homenageou o colégio na minissérie Anos Dourados) freqüentaram suas turmas.
Museu de História Natural, que era um setor do Pedagogium, no Iserj. Atualmente a área está em fase de recuperação do acervo |
Desde 1997, o Iserj integra a rede Fundação de Amparo às Escolas Técnicas (Faetec) e está vinculado à Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia. O instituto oferece turmas da creche ao curso Normal Superior e atende 4.949 alunos. Para divulgar a história da instituição junto aos alunos são promovidas visitas guiadas pelo prédio, com alunos da educação infantil e do ensino fundamental, além de estudantes de outras escolas da comunidade. No passeio, eles ficam sabendo de histórias curiosas, como a do chafariz instalado no meio do pátio. "Toda vez que ele era ligado, era sinal de que havia uma autoridade visitando a escola", diz Heloísa. Assim, ninguém era pego de surpresa.
Colégio João Alfredo
A poucos quilômetros do Iserj, os cariocas encontram outra instituição de ensino público anterior à República: o Colégio Estadual João Alfredo. Fundado em 1875, o então Asylo dos Meninos Desvalidos era um colégio em regime de internato e oferecia, além da educação formal, oficinas profissionalizantes a meninos carentes.
O prédio situado na Avenida 28 de Setembro, em Vila Isabel, se caracteriza pela arquitetura colonial e pertencia a um rico fazendeiro da região. Na sua planta, destacam-se um porão, com uma parede de pedras enormes, que serviria de salão para as festividades dos escravos da fazenda – e onde hoje a escola promove aulas de música, lambaeróbica, street dance, capoeira e grafite – e um grande pátio interno. Sob o pavimento principal do prédio, uma área que teria abrigado uma senzala está abandonada e serve de depósito de entulhos. Já a tradicional capela, no pavimento inferior do colégio, foi restaurada em 2004 e tem como uma de suas peças de decoração uma via-sacra esculpida em madeira pelos meninos do antigo abrigo.
O colégio atende três mil alunos, distribuídos pelo ensino médio e pós-médio em Administração. "O João Alfredo foi o primeiro colégio profissionalizante do país. Promovemos visitas guiadas com os alunos do 1º ano, para integrá-los mais à escola.
Afinal, você só ama o que conhece", diz a diretora Marli Alves da Silva, que luta para combater as pichações e depredações do casarão, além do desgaste natural das instalações.