Deus abandonou os céus monótonos em que vivia e se mudou para o jardim das delícias
Publicado em 10/09/2011
O que vou escrever não saiu da minha cabeça. Encontrei escrito nas Escrituras Sagradas. Elas contam que no princípio de todas as coisas Deus estava infeliz. A mesmice da eternidade perfeita lhe dava tédio. Aí ele se perguntou: “
o que é que me faria feliz?
”
Aí ele teve um sonho: sonhou com um jardim. Resolveu, então, plantar um jardim para ficar alegre. Começou nos confins do vazio, criando as grandes estrelas, o sol, a lua, e foi afunilando, afunilando, até chegar a um lugar bem pequeno onde plantou o seu sonho: o paraíso. Fontes, árvores frutíferas, flores, pássaros, borboletas, animais de todo tipo e até um vento fresco e perfumado que soprava nas tardes.
Era o jardim das delícias, destino dos homens, destino do universo, o destino de Deus! O paraíso era melhor que o céu! Prova disso é que Deus abandonou os céus monótonos em que vivia e se mudou para o jardim.
Terminado o seu trabalho de seis dias, Deus parou de trabalhar. Entregou-se então àquilo para o que o trabalho havia sido feito: uma deliciosa vagabundagem contemplativa. Os olhos olharam para o jardim e experimentaram o êxtase da beleza! “E viu Deus que era muito bom…” Nada havia para ser feito. Havia tudo para ser gozado.
Os poemas sagrados colocam as coisas na ordem certa. A semana bíblica começa com os dias de trabalho e termina com o dia do descanso. Mas a Igreja alterou essa ordem. Pôs em primeiro lugar o dia do descanso. Descansar para quê? Para trabalhar. Nessa inversão da ordem se encontra toda uma filosofia de vida. A filosofia do Criador diz que o objetivo da vida é o gozo. Vivemos para o prazer e a alegria. O trabalho é apenas um meio para se chegar ao gozo. Mas a filosofia da Igreja diz o contrário: que o objetivo da vida é o trabalho, e o descanso existe só para a gente trabalhar melhor. O gozo é perigoso. No gozo moram os pecados. É preciso trabalhar muito para não ter tempo para pecar…
Se fôssemos feiticeiros, se tivéssemos o poder mágico dos deuses, bastaria dizermos o sonho em voz alta para que ele se realizasse. Mas, infelizmente, feiticeiros não existem. Para que as coisas existam, não basta sonhar. É preciso pensar. É o sonho que desperta a inteligência: “inteligência! Pense as coisas que tenho de fazer para realizar o meu sonho”. Somente então a inteligência acorda e se põe a pensar.
A inteligência funciona do jeito como o pênis funciona. Pois o que é o pênis? É um órgão que, no seu estado normal, é um apêndice ridículo, flácido, que realiza funções escretoras automáticas que não exigem esforço de pensamento. Mas, se provocado pelo desejo, ele passa por extraordinárias transformações hidráulicas, cresce, aponta para o alto e ganha o poder de dar prazer e de criar vida. Sem desejo é inútil que a cabeça lhe dê ordens…
Assim também é a inteligência. No cotidiano, ela se encontra num estado de flacidez e preguiça que é mais do que suficiente para a realização das tarefas rotineiras. Quando, entretanto, a inteligência é provocada pelo desejo, ela cresce e se põe a pensar as coisas mais extraordinárias. Essa idéia louca já havia passado pela sua cabeça – que a função principal da educação é erotizar a inteligência para que ela?tenha ereções e?acorde da sua letargia?
Rubem Alves – Educador e escritor –
rubem_alves@uol.com.br