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Sobre a inteligência

Trata-se de um poder sem discriminação moral, que desconhece o bem e o mal

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Alves

Tenho vergonha do que pensei quando adolescente. Mais que vergonha, tenho raiva de mim mesmo, do que fui. Eu fui aquilo que hoje detesto: arrogante e presunçoso. Fui assim por causa das idéias religiosas em que eu acreditava. E me pergunto: “Como é que eu pude acreditar naquelas doideiras?”. Fui religioso fundamentalista e acreditei com certeza absoluta na existência do inferno. O Vinicius e o Chico também sofreram perturbação semelhante quando adolescentes.

E eu me pergunto: Onde estava a minha inteligência? Onde estava a inteligência deles?

As estórias das Mil e uma noites me ajudam a entender. Lá se encontram lâmpadas e garrafas onde vivem gênios aprisionados com poderes ilimitados. Se alguém – místico ou bandido, não importa – abre a tampa da garrafa, o gênio sai e se torna escravo daquele que o libertou. O gênio tem o poder dos deuses. Mas não tem vontade própria.  Faz o que seu mestre ordena.

O místico lhe dirá que deseja ver Deus. O gênio, sem discutir, o levará ao Paraíso. O bandido dirá que deseja roubar o tesouro de Ali Babá. O gênio o levará até a gruta e a abrirá dizendo “Abre-te Sésamo”. 

Assim é a inteligência: ela é um poder sem discriminação moral, desconhece o bem e o mal. Tanto pode produzir armas letais como pode produzir vacinas. Para distinguir o bem do mal, a inteligência teria de ser serva da sabedoria. Mas, como o gênio da garrafa, ela é serva do coração do seu dono… A sabedoria mora em outro lugar.

Então o meu problema nada tinha a ver com a minha inteligência, que era então o que ela é hoje. O problema tinha a ver com o coração do dono da garrafa: eu.

A inteligência se parece com as lâmpadas. As lâmpadas servem para iluminar. Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes. Há lâmpadas de 60, 100, 150 watts… Esse número em watts diz o poder de iluminação da lâmpada.

Também as inteligências servem para iluminar. Nos gibis, os ilustradores desenham uma lâmpada acesa sobre a cabeça de alguém que tenha tido uma idéia brilhante. E as inteligências, à semelhança das lâmpadas, também têm potências de iluminação diferentes.

Os psicólogos inventaram testes com o objetivo de medir o poder de iluminação da inteligência, a que deram o nome de QI. Eu prefiro, em vez de de QI, as letras “WI”, “wattagem” da inteligência. Essa imagem ilumina mais.

Há WIs as mais diferentes. Inteligências de WI 200 têm um extraordinário poder de iluminação. Havia um professor universitário que se gabava de ter WI 200 e, para provar, mostrava a carteirinha.

Mas as lâmpadas, a gente não fica olhando para elas. Olhamos para o objeto que elas iluminam. Uma lâmpada de 200 watts pode iluminar o rosto de dor de um homem numa câmara de torturas, enquanto uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe embalando o filhinho.

As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam e não pelo seu poder de iluminar. Há inteligências de QI 200 que só iluminam esgotos e cemitérios. E há inteligências modestas que iluminam as asas de uma borboleta.

A inteligência, como as lâmpadas, não tem vontade. Ela obedece a mão que direciona o seu foco. É mandada. Como o gênio.

O problema não estava na minha inteligência, mas no objeto que ela iluminava. Doideira. A escolha do objeto não é coisa da inteligência. É coisa do coração, onde mora a sabedoria.



Rubem Alves – Educador e escritor –



rubem_alves@uol.com.br

Autor

Rubem Alves


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