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Sombria perfeição

Uma novela policial do britânico Ballard ilustra as dificuldades de se educar em redomas, a partir de visões idealistas

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

Era uma vez um monge. E ele decidiu construir um barco. Encerrado em seu mosteiro durante semanas, escolheu o tipo de madeira a ser utilizado, calculou as proporções do barco, a altura do mastro, o tamanho das velas – e no pátio do mosteiro terminou de montar o barco. Levou-o à praia, e empurrou-o até que entrasse ana água. Assim que entrou no mar… o barco vacilou, as ondas foram deglutindo o indefeso artefato, e em poucos minutos o barquinho foi a pique. Perplexo, o monge começou a gritar: "O mar está errado! O mar está errado!"

O monge não aceitou a realidade do mar, nem antes nem depois de construir o barco. Imaginou um barco, idealizando o mar. Algo semelhante acontece com nossas teorias educacionais e nossas intenções didáticas. Ideias para uma educação perfeita podem acabar no fundo do mar. Planejar e organizar é necessário, mas que a idealização não despreze a realidade.

Olhando o mar real (às vezes revolto, às vezes tranquilo, sempre enigmático), a melhor maneira de conhecê-lo é não enquadrá-lo em normas externas e arbitrárias, nem tentar prever, com arrogância, todas as suas possíveis reações. Jamais dará certo. O mar, como a realidade, está aberto para a navegação. Mas, como a realidade, é indomável, transborda, possui uma ampla margem de imprevisibilidade.

Falta bom senso a quem tenta aprisionar o mar dentro de um aquário ideal. Para navegarmos de verdade não subestimemos a grandeza e a força do mar. Temos de aprender a não prendê-lo em perigosos sonhos perfeccionistas.


O perigoso perfeccionismo



A novela policial
Corrida selvagem

, do escritor britânico J. G. Ballard (1930-2009), é uma antiutopia educacional. Escrita no final da década de 1980, retrata uma experiência pedagógica extrema, destinada ao bem-estar absoluto, mas com desfecho infeliz. Um grupo de intelectuais, professores e profissionais liberais criou um condomínio confortável e luxuoso a oeste de Londres, onde pretendiam educar seus filhos com maximização do que há de melhor para crianças e jovens: ambiente protegido, convivência pacífica, boas leituras, vida familiar, estudo intenso, alimentação correta, esporte saudável etc. Tudo programado para dar certo. Lugar ideal, condições ideais, orientação segura para que 13 crianças e adolescentes se tornassem cidadãos perfeitos.

Certa manhã, porém, os adultos aparecem mortos. Foram todos assassinados. Os filhos desapareceram, e a polícia trabalha com a hipótese de um supersequestro. O tempo passa, ninguém exige resgate algum. Não há pistas que levem aos autores do massacre. O psiquiatra forense Richard Greville pretende decifrar o enigma. O assassinato dos 32 moradores, descobre mais tarde, foi realizado pelos próprios filhos, confinados naquela ilha social de excelência.

Num primeiro momento, a experiência produziu indicadores de sucesso. Analisando-se fotos e vídeos, via-se…


… um grupo de jovens simpáticos e talentosos, bem-sucedidos na escola e com uma ampla gama de interesses ao ar livre que incluíam natação, asa-delta, mergulho e salto de paraquedas.

Todas aquelas atividades, porém, observou o psiquiatra, pareciam indicar outra coisa: uma vontade louca de escapar, de se livrarem de suas vidas maravilhosas, primorosas, controladas, vigiadas…

Presos naquela redoma de ouro, os jovens perderam o contato com o real. Suas mentes entraram na loucura como forma desesperada de encontrar a liberdade. Foi o próprio regime de vida perfeita que efetuou uma espécie de lavagem cerebral nos adolescentes. A tolerância infinita e os cuidados extremos dos pais provocaram o contrário do que esperavam.

O cotidiano regulamentado em cada detalhe impedia a autoexpressão das crianças, apagava suas emoções, desarmava sua espontaneidade. Tudo previsto e direcionado. O resultado foi deflagrar uma corrida selvagem para fora dos limites ideais, na forma de um crime perfeito.


Piaget esfaqueado


As dez famílias da história idealizaram uma forma de educar em que as crianças estavam sempre envolvidas em atividades louváveis, mergulhadas num clima de bondade total, de harmonia forçada. O condomínio ideal se assemelha ao barco do monge. É uma construção teórica perfeita, mas desvinculada da realidade das crianças e dos jovens. A estes não era mais permitido escolher o que já não estivesse definido. Não lhes era permitido nem escolher nem falhar.

Aqueles filhos tinham pais zelosos, conscientes e intelectualizados. No entanto, apesar disso… ou por causa disso, sentiam-se profundamente infelizes. Sentiam falta de uma coisa imperfeita e problemática chamada
vida real:


As crianças estavam desesperadas pela brutalidade das emoções de verdade, por pais que, de vez em quando, as desaprovassem, ficassem aborrecidos e impacientes, ou mesmo não as entendessem. Precisavam de pais que não se interessassem por tudo o que faziam, que não tivessem medo de se irritar ou chatear com elas, e não tentassem governar cada minuto de suas vidas com a sabedoria de Salomão.

Entre as pistas que poderiam permanecer indecifráveis havia o exemplar de um livro de Piaget esfaqueado, mutilado. Não se menciona o título exato. Ballard diz que se tratava de um "texto clássico de Piaget sobre a educação de crianças". Piaget, aqui, foi escolhido como símbolo da pedagogia que sabe exatamente como as crianças "funcionam" e que, portanto, em tese, conhece também os melhores procedimentos a adotar para que tudo transcorra a contento. Tal conhecimento, porém, pode ser contestado pela vida.

Seja Piaget ou outro autor, tenhamos ou não nos identificado com os pais da novela de Ballard, desejosos da educação perfeita, a ficção faz um alerta silencioso, que a leitura das entrelinhas saberá captar. As crianças da novela foram tratadas como objetos de amor pedagógico. Objetos de uma experiência que, em princípio, estava impulsionada pelas melhores intenções do mundo. Aí reside o perigo de uma pedagogia tão amorosa, tão convencida do que é bom para os outros!

Não há dúvida de que somos perfectíveis. Todos desejamos ser melhores, crescer, desenvolver capacidades, aprender mais, aproximar-nos da plenitude. O problema está em construir um mundo artificial (e, afinal, desumano), sob o pretexto de modelar seres ideais.

Os seres humanos reais não cabem em lugares perfeitos. Lugares ideais, onde o ar é rarefeito, são simplesmente sufocantes!

Autor

Gabriel Perissé


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