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Uma disputa acirrada

Com a entrada em cena do Ser (Grupo Abril) e da FTD, aumenta a oferta dos chamados "sistemas de ensino" e a briga por alunos de escolas públicas e privadas

Em artigo escrito para a revista Educação e Sociedade de dezembro de 1999, Dermeval Saviani, professor emérito da Unicamp e coordenador do grupo de estudos “História, Sociedade e Educação no Brasil”, definia, com rigor acadêmico, o significado original da expressão “sistema de ensino”.

No dizer de Saviani, sistema de ensino é “uma ordenação articulada de vários elementos necessários à consecução dos objetivos educacionais preconizados para a população à qual se destina”. Explica, ainda, que a ação sistêmica está necessariamente vinculada a um plano de ação que dê coerência a um conjunto de finalidades, com atividades organizadas segundo normas que decorrem de valores. E alerta para usos mais genéricos da expressão, que levariam a imprecisões conceituais.

Nesse artigo, intitulado “Sistemas de ensino e planos de educação: o âmbito dos municípios”, o autor discutia questões decorrentes das transformações tanto da Constituição Federal como da Lei de Diretrizes e Bases, então recém-vigentes. E questionava até que ponto os municípios estariam, do ponto de vista legal, aptos a constituir sistemas de ensino próprios e fazer seus planos educacionais.

Oito anos depois, o processo de municipalização das redes de ensino já se tornou realidade em muitas cidades brasileiras. Boa parte delas, ao fazer essa migração, se viu órfã das matrizes diretivas e dos valores educacionais que definiam suas práticas, antes gestadas no âmbito dos estados. Muitas delas optaram por contratar o serviço de terceiros que provêem o material didático, planos de aula, avaliações institucionais e a formação contínua dos professores, entre outros serviços.
Ainda que de certo modo sejam assistêmicos, pois não congregam a dimensão integral explicitada por Saviani, esses serviços, criados ainda antes da LDB no âmbito das escolas privadas, foram batizados de “sistemas de ensino”. E estão, cada vez mais, caminhando para atingir um estado de quase ubiqüidade na educação brasileira.

Como se diz no jargão dos economistas, trata-se de um mercado superaquecido. Prova disso é a recente entrada em cena de dois novos concorrentes: o grupo Abril, que promete investir R$ 10 milhões nos próximos três anos, com a expectativa de abocanhar 20% do mercado, e a editora FTD, peso-pesado no campo do livro didático. Além deles, há também a Rede Católica de Ensino, há um ano no mercado e voltada exclusivamente a esse segmento, e novidades como o Programa Cidade Educadora, que se auto-intitula como “transdidático”, e o Sistema Criar de Ensino da Língua Portuguesa, novas variantes que buscam emplacar serviços para determinados nichos de mercado.

Segundo Emerson Santos, diretor de marketing da Abril Educação, de maio, mês em que o Ser foi efetivamente lançado, até o início de outubro, atingiu 20% de sua meta. Números de contratos fechados, no entanto, são um mistério. Como muitas das empresas do segmento, a Abril diz que não os menciona.

Também da mesma forma que executivos de outras empresas, Santos faz questão de ressaltar o papel do professor em relação ao sistema de ensino. “Quem executa o processo é a escola, nós entramos apenas como um facilitador desse processo. O grande papel está na mão do professor, e é preciso que ele tenha ferramentas e condições para desenvolver o processo de aprendizado com os alunos”, defende. E completa: “O que queremos é juntar tudo que a Abril Educação tem de melhor, em termos de conteúdo, juntando aí os grandes autores, as publicações, juntar a um pacote de serviços que também desenvolvemos e oferecer às escolas”.

Para Santos, o fato de a Abril ter no grupo as editoras Ática e Scipione, tradicionais no segmento do livro didático, é um fator-chave para o sucesso do Ser. As publicações do sistema serão produzidas por autores das duas editoras. Segundo o executivo, foram selecionados alguns deles, mais afinados com a linha metodológica adotada.

Uma das metas educacionais prioritárias do sistema é fazer com que o estudante passe no vestibular. “Também temos a preocupação de oferecer outras reflexões, mas o vestibular é um item básico no sistema de ensino, não dá para se iludir. Temos de estar focados nisso”, assume Santos. Num primeiro momento, o sistema, que convive também com o Apoioescola, lançado pela Abril no ano passado, está mais voltado a escolas privadas. Mas, em breve, o Grupo também irá buscar se inserir nas redes públicas.

Para a maioria dos concorrentes, ao menos no discurso a entrada do Grupo Abril fará bem ao mercado. Para Maria Cristina Swiatovski, diretora-geral da Opet – que atua em 300 escolas de todo o Brasil, com cerca de 75 mil alunos – ,um dos principais benefícios da entrada do concorrente é fortalecer o próprio conceito de sistema de ensino.

“Isso nos provoca a melhorar, pois tudo que a Abril faz, faz com qualidade”, diz. Mas ressalva que a operação da concorrente não tem um trunfo que muitos dos outros sistemas podem apresentar: o fato de terem escolas próprias. “A escola funciona como um laboratório que retroalimenta o sistema. Fazemos constantemente avaliações, do aprendizado dos alunos à gestão, passando pela motivação dos professores. Se algo não vai bem, acende-se uma luz que nos leva a melhorar o material ou o trabalho de assessoria”, explica Maria Cristina.


Para Maria Cristina Swiatovski, o fato de ter escolas próprias ajuda os sistemas de ensino, pois elas funcionam como um laboratório

Márcia Carvalhinha, coordenadora do apoio pedagógico de convênios do Objetivo (750 escolas, sendo 200 públicas, e cerca de 476 mil alunos), vai na mesma linha. Elogia a seriedade e a qualidade da Abril, mas diz que o diferencial de sua instituição é ser uma rede de escolas. “O que oferecemos aos nossos parceiros é um pacote de produtos e serviços testado em nossas salas de aula. Quem escreve o nosso material didático são os professores que estão em sala de aula, testando-o com o aluno.”

Quem, ao menos oficialmente, não está incomodado com a entrada em cena da Abril é o Grupo Positivo, do Paraná, maior empresa do segmento. À pergunta sobre se há alterações no trabalho da Editora Positivo em função dos novos concorrentes, Hélcio Rodrigues Simões, gerente de marketing da divisão de sistemas de ensino responde com um lacônico “não”. Atualmente, segundo o dirigente, o grupo conta com 2.900 escolas e 650 mil alunos, aí computados seus dois sistemas de ensino, o SPE e SABE, voltados às redes particular e pública, respectivamente.


Migração

A constituição do Sistema Ser expõe mais claramente um movimento de mercado, que vai ganhando peso à medida que muitas redes públicas de ensino, especialmente as de prefeituras de porte pequeno, começaram a recorrer aos sistemas como forma de dar unidade e orientação a seu corpo docente. Isso porque, ao passarem do Estado para a prefeitura, muitas escolas ficaram sem orientação pedagógica e formação continuada de professores, entre outras articulações que os corpos diretivos estaduais proporcionavam.

Assim, muitas editoras de livros didáticos e paradidáticos se viram perdendo expressivas fatias de mercado para o material preparado pelos sistemas, pois estes, além do material, oferecem apoio ao professor.

Foi o que aconteceu com as duas do grupo Abril, Ática e Scipione, e também com a FTD, outra que também passará a atuar, a partir de 2008, nas duas frentes. A decisão de criar o FTD Sistema de Ensino foi, segundo Silmara Vespasiano, gerente editorial do grupo, “apontada pelo mercado”. “Ouvimos nossos representantes e filiais, pesquisamos a análise de adoção dos nossos livros e o que estava acontecendo”, diz.

Segundo Silmara, há três anos a FTD lançou um material de revisão para o 3º ano do ensino médio, com a idéia de oferecê-lo como complemento às atividades pedagógicas de classe. Mas muitas escolas começaram a requisitar o material para ser usado em sala de aula. “Vimos que tinha aceitação, e começamos a pensar em ter o nosso próprio sistema de ensino”, conta a gerente. A editora decidiu, então, instituir o material para o 1º e 2º anos do ensino médio e para o 1º a 5º anos do fundamental. A meta inicial para a área pedagógica é ter mais de 200 escolas conveniadas até 2009.

Além dos serviços agregados que integram o pacote – suporte pedagógico, atendimento on-line via site, serviço 0800, atividades didáticas, avaliações, simulados e desafios para os alunos do ensino médio, atividades diversas para os alunos do ensino fundamental, assessoria pedagógica presencial e treinamento, ambos sob solicitação da escola -, o di­ferencial apontado pela FTD são seus autores. “A maioria dos sistemas apostilados tem uma grande coordenação, mas não tem os autores de didáticos. Temos esses autores e, no caso do fundamental, com grande vivência de sala de aula”, destaca Silmara.

A editora adaptou os livros para as apostilas. “Mantivemos a distribuição do conteúdo e a qualidade gráfica do livro”, diz a gerente, que julga necessário que os materiais apostilados passem por um processo de análise semelhante ao que é feito com os livros no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), rea­lizado em conjunto por universidades e pelo Ministério da Educação. “Se passamos por esse crivo, por que os sistemas não passam? Por que algumas escolas vão utilizar material que foi analisado e outras não?”, pergunta Silmara.

Outro novo concorrente do setor é a Rede Católica de Educação (RCE), sistema em operação há um ano e voltado exclusivamente às escolas católicas. Segundo Manoel Alves, presidente da organização, trata-se de um serviço que visa fortalecer o segmento.

“Havia muitas católicas que estavam em outros sistemas de ensino, sobretudo porque não tinham um sistema próprio à disposição. E outras escolas religiosas que precisavam de um sistema, sem que houvesse uma opção com esse ideário”, avalia Alves.

O pacote de serviços – ou soluções integradas – oferecido pela RCE tem pontos de identidade com os competidores (capacitação de gestores, equipes técnicas e professores, portal de internet, avaliação e livros didáticos, entre outros) e outros característicos de entidades dessa natureza, tais como aconselhamento para questões sociais, pastoral da juventude e catequese sacramental.

Para Alves, seu diferencial é a oferta de tradição e inovação conjugadas. A tradição vem do ideário católico, e a inovação de “uma concepção pedagógica mais atualizada”. Segundo o dirigente, se apenas as escolas católicas que já estão conveniadas a outros sistemas migrarem para a RCE, em três anos ela estará entre as três maiores redes. “Depois de um ano, já somos maiores do que a maioria”, sustenta ele.



Cidadania e português, alternativas


Áureo Gomes Monteiro Jr., da Aymará: “material para ser utilizado em conjunto com o que a escola já tem”

Um livro para quem não quer livro. Segundo Áureo Gomes Monteiro Jr., sócio-proprietário da Editora Aymará, essa foi a idéia de partida da Coleção Cidade Educadora, lançada em novembro depois de passar por um tempo de “vivência” em escolas de Esteio (RS), no ano de 2006.

“Imaginamos fazer um livro transdidático, para ser usado em conjunto com os recursos didáticos que a escola já tem. Não é um conteúdo curricular tradicional e permite que professor e aluno utilizem uma competência que valorizamos muito, que é a linguagem”, diz Monteiro Jr., que trabalhou no Positivo durante quase 10 anos.

Em essência, a idéia é que o material trabalhe os chamados temas transversais por meio de textos literários, com forte ênfase em questões ligadas a valores e cidadania. Dessa forma, a coleção não se coloca como concorrente nem do livro didático e nem dos apostilados. Traz, além disso, serviços como formação de professores, planejamento estratégico, identificação de potencialidades, avaliação de recursos humanos e de estrutura, uso de tecnologia educacional e avaliação e monitoramento.

Já o Sistema de Ensino de Língua Portuguesa Criar, sediado em Ribeirão Preto (SP), usa a mesma nomenclatura, mas funciona como uma escola de línguas, com a peculiaridade de que o idioma oferecido é o português.

Com três focos de atuação – alunos que estão se preparando para o vestibular; universitários que estão fazendo monografias e outros trabalhos acadêmicos; e pessoas do meio corporativo que precisam melhorar a redação -, o Criar tem aproveitado a grande demanda pelo aprimoramento da escrita que existe hoje, em grande parte decorrente da ineficiência da escola. Além de quatro unidades próprias, todas na região de Ribeirão Preto, o sistema já tem franquias em outras 11 cidades do interior, nove do Estado de São Paulo, uma do Rio de Janeiro e uma de Minas Gerais.

Autor

Rubem Barros, colaborou Ricardo Marques


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