NOTÍCIA
Educador australiano ressalta a importância de um currículo nacional articulado com os conceitos de competências e habilidades e com as avaliações internas e externas
Publicado em 26/01/2012
Em 2008, o Conselho Ministerial de Educação, Emprego, Treinamento e Assuntos da Juventude da Austrália, órgão que delibera sobre educação, divulgou a “Declaração de Melbourne”, um documento que traçava os objetivos educacionais para os próximos 10 anos no país. Uma das iniciativas estabelecidas pela declaração era o desenvolvimento de um currículo nacional, que ficaria, no final daquele ano, sob a responsabilidade do Australian Curriculum, Assessment & Reporting Authority (ACARA, Autoridade em Currículo e Avaliação, em tradução livre). Até o final de 2010, a ACARA elaborou, em parceria com especialistas e docentes, os currículos de inglês, matemática, história e ciências, destinado a alunos de educação infantil ao ensino médio. A previsão é de que sejam desenvolvidos, até 2013, os parâmetros curriculares das seguintes áreas: geografia, economia e negócios, cidadania, artes, idiomas, saúde e educação física e tecnologia. “O processo está apenas começando. Um estado já adotou os currículos, e outros adotarão em 2012”, conta Barry McGaw, diretor da ACARA.
Por que a existência de um currículo nacional é importante para um país?
É importante que as pessoas saibam o que os alunos devem aprender. Na Austrália, houve um movimento nos anos 70 que advogava o desenvolvimento do currículo dentro da escola, e não em âmbito nacional. O argumento usado era o de que os professores sabem o que os estudantes devem aprender, e não os formuladores de políticas públicas. O que aconteceu? Em alguns lugares, isso funcionou muito bem, porque os docentes eram criativos e tinham clareza sobre como o currículo deveria ser. Em outros, os professores não tinham tanta certeza. E, pior: por considerar que certos componentes do currículo eram inadequados a seus alunos, desenvolveram um projeto que esperava menos dos estudantes, o que acabava por restringir oportunidades. Foi então que voltamos com a ideia de um currículo forte. A proposta foi trabalhar em conjunto para ter um único documento para todos. Mas não o fizemos de maneira prescritiva. Ele mostra o que os alunos devem aprender, mas o professor decide como organizará a aprendizagem.
Como ele foi construído na Austrália?
Para a elaboração dos currículos de inglês, matemática, história e ciências, processo que aconteceu entre 2008 e 2010, começamos pela redação de um documento que elencaria as estruturas e as sequências de aprendizagem desde a pré-escola até o ensino médio. Colocamos esses rascunhos em discussão, para que as pessoas pudessem se reunir ou sugerir mudanças pela internet. Então, revisamos os documentos e os encaminhamos para o conselho de ministros de Educação, que fez a aprovação. Tínhamos em mãos um apanhado que mostrava como a disciplina de história seria ensinada, o que nos levava à necessidade de redigir o currículo final, tarefa assumida por uma equipe. No caso do currículo de inglês, pensávamos que esse grupo o elaboraria ao redor de duas áreas: letramento e literatura. Mas no final do processo, ele foi estruturado por letramento, literatura e linguagem. Sentiu-se a necessidade de explicitar o estudo da natureza da linguagem.
Qual a diferença entre esse documento que deu origem ao currículo e o próprio currículo?
Explico com um exemplo mais concreto: o documento original fala de coisas como: “quando os alunos estudam história australiana, devem prestar atenção a coisas que aconteciam no mundo no mesmo momento. Devem aprender a pensar na história de seu país em um contexto maior”. Assim, quando estudam a colonização inglesa na Austrália, devem aprender também sobre outras experiências de colonização europeias na América do Sul. O currículo especifica quais conteúdos eles devem ensinar: quando se deu a colonização, se esse assunto está adequado ao ensino fundamental ou ao médio etc.
Qual o nível de autonomia docente em relação ao currículo?
Os professores podem organizar o ensino da maneira que quiserem desde que respeitem o que os alunos devem aprender em cada etapa educacional. Podem escolher os livros ou optar, ou não, pelo uso da tecnologia. Em literatura, por exemplo, não prescrevemos os livros a serem adotados. Dizemos apenas: deve haver poesia, prosa etc. O currículo de matemática, que totaliza 80 páginas, apresenta o conteúdo a ser ensinado, mas não oferece um material prescritivo sobre como ensinar. O currículo não precisa ser prescritivo. Um fato curioso: após a publicação dos parâmetros curriculares na internet, a editora Cambridge University Press produziu livros que ensinam o professor a trabalhar com o currículo australiano. Há um título destinado a alunos do 10º ano que elenca exatamente os textos ou filmes que devem ser usados. Um dos longas-metragens recomendados é o Austrália, filme que rendeu certa polêmica em meu país. O livro diz que os alunos devem assisti-lo, e ainda indica um link com um fórum de debate sobre o assunto. Mas tanto o filme quanto a discussão gerada por ele são sofisticados demais para jovens de 15 anos.
Como foi resolvida no currículo a articulação entre conteúdos, competências e habilidades?
Antes do movimento pela instituição dos parâmetros curriculares nacionais, havia duas abordagens para essa questão na Austrália. Há dois grandes estados no país, e o maior deles se restringia a um currículo de teor conteudista, focado apenas nas disciplinas. Já o outro defendia que os conteúdos eram necessários, mas que também era preciso buscar a ênfase em criatividade, resolução de problemas, entendimento intercultural, trabalho em conjunto, o que chamamos, na Austrália, de capacidades (e muitas pessoas chamam de competências). Mas mesmo esse estado que buscava as capacidades trabalhava com um currículo isolado: as capacidades ficavam ao lado dos conteúdos, como uma coisa diferente a ser feita pelos professores. Cabia ao docente decidir como desenvolver capacidade x ou y em seu aluno. No novo currículo, decidimos ser mais explícitos. Pensamos que os dois pilares (conteúdos e capacidades) deveriam interagir. Quando elaboramos o currículo de língua inglesa, apresentamos à equipe responsável as capacidades que gostaríamos que nossos alunos desenvolvessem, para além do fato de aprender a própria língua. O que fizemos foi inserir ícones nos conteúdos que possibilitam o desenvolvimento das capacidades. Se você procurar o currículo de língua inglesa, encontrará indicações de onde a criatividade pode ser desenvolvida, ou onde há potencial para o desenvolvimento do entendimento intercultural. O professor vê o ícone e pensa: aqui eu posso desenvolver uma capacidade. Um professor dos anos iniciais do ensino fundamental que opta por dar ênfase à criatividade pode pesquisar no currículo específico para a sua série conteúdos que permitem o desenvolvimento dessa capacidade.
Por que construir primeiro o eixo dos conteúdos, deixando as capacidades para a segunda etapa do currículo, e não o contrário?
O raciocínio inverso é completamente equivocado. Não há capacidades sem conteúdo. E mais importante: algumas das capacidades mais fundamentais não se configuram da mesma maneira em diferentes disciplinas. Por exemplo, a capacidade de resolver problemas não tem o mesmo significado para física e para história. Só é possível resolver problemas em física se os conceitos necessários foram aprendidos. A especialização em uma determinada área está altamente relacionada com o entendimento das demandas dessa área. Um estudo realizado na década de 80 pela Universidade de Pittsburgh mostrou que não é possível simplesmente “transferir” a expertise de uma área de conhecimento para outra. Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores colocaram o mesmo problema de ciência política para especialistas e estudantes universitários em ciência política e especialistas em química. Os químicos o resolveram da mesma maneira que os estudantes universitários de ciência política. Ou seja: é necessário ter um entendimento profundo sobre o assunto para desenvolver a capacidade de resolver problemas. Quando construímos o currículo, muitos disseram que seria melhor focar a atenção nas capacidades e não nos conteúdos. Insistimos em começar pelos conteúdos, e em fazer o currículo com os dois pilares, para que as capacidades não entrem nos parâmetros como uma lista “extra” de “temas”. O ideal é que elas sejam desenvolvidas através do currículo de disciplinas.
Há alguma relação entre o currículo e as avaliações aplicadas pelos professores em sala de aula?
Sim. Além de apontar o que os alunos de cada série devem ter a chance de aprender, indicamos inicialmente as expectativas de aprendizagem. Mas logo percebemos que os docentes ficariam com uma dúvida: o que o estudante deve realmente ser capaz de fazer se aprendeu o que o currículo indicou? Então, acrescentamos exemplos de trabalhos dos alunos no currículo. Recolhemos exemplos pelo país e os distribuímos para diversos professores, para que eles nos dissessem se eram exemplos bons ou não. Por fim, inserimos os exemplos com anotações para explicar os pontos fortes e fracos dos trabalhos. Eles ajudam os docentes a ter parâmetros para preparar suas avaliações internas.
Há diálogo também com as matrizes de avaliações em larga escala?
Há uma avaliação nacional em leitura e matemática que é aplicada a todos os alunos dos 3ºs, 5ºs, 7ºs e 9ºs anos. Além disso, há uma outra prova aplicada ao final do ensino médio. A história é curiosa. Antigamente, cada estado fazia sua própria avaliação de leitura e matemática, que estava relacionada com o currículo específico de cada um. Então o governo decidiu que os resultados das provas deveriam estar disponíveis em uma escala comum para todo o país. Por alguns anos, os estados continuaram com suas próprias avaliações, sendo que o governo colocava os resultados em uma única escala. Em 2008 optou-se pela aplicação de uma única avaliação. Até então, não havia um currículo. Agora que ele existe, com as expectativas de aprendizagem, vamos redesenhar as avaliações, para que o currículo as defina, e não o contrário.