NOTÍCIA
Mesmo ao sair da etapa em que a educação está historicamente associada à maternagem, os homens ainda são minoria nos primeiros anos do ensino fundamental. A explicação pode estar no medo da tarefa de alfabetizar
Publicado em 10/09/2012
Robinson Betiol começou a lecionar aos 32 anos e sempre quis alfabetizar |
Esse “medo” foi percebido durante o estudo Homens fora de lugar? A identidade de professores homens na docência com crianças, que aborda como a maciça presença feminina nos espaços educativos e as representações que as mulheres fazem de seu envolvimento incidem sobre as práticas pedagógicas. Para essa pesquisa, Cardoso entrevistou nove docentes homens da rede municipal de Belo Horizonte, que trabalham na formação de crianças de 6 a 8 anos de idade. Segundo eles próprios, os motivos para evitar a função e buscar outros cargos são o receio de alfabetizar, porque não se sentem preparados o suficiente para essa responsabilidade; a falta de interesse pessoal e profissional nesse tipo de ensino e cansaço da rotina diária com as crianças.
Um dos entrevistados, após um ano e quatro meses nesse papel, disse que não tinha aprendido a alfabetizar no curso de pedagogia, “negociou” na escola e foi colocado na função de coordenador. Outro relatou ter ficado muito desgastado por apresentar dúvidas de como explorar o texto em todos os aspectos com os alunos e acabou pedindo para trabalhar com educação física em vez de ficar no “batidão da sala de aula”.
Para Cardoso, essa “fuga da alfabetização” e a ascensão na carreira docente estão atreladas a diversos fatores. Entre eles, as representações do magistério, do que é ser um professor homem em um ambiente notoriamente repleto de mulheres, do que é ser um coordenador, um diretor, ou funcionário direto da administração da rede de ensino; a busca por mais altos salários; as representações de gênero relativas ao exercício de uma atividade de homens, como administração, controle e organização em um ambiente feminino.
O lugar da vocação
Tal “temor” pode tanto ser um fato como um instrumento discursivo, alerta Cardoso, ou seja, “uma estratégia utilizada pelos professores homens para justificar os pedidos de mudança em suas carreiras”. Ele pondera que existem as duas possibilidades, porque é preciso considerar o contexto em que o docente atua. “É muito diferente ser um professor de crianças, envolvido ou não com a tarefa da alfabetização em um grande centro urbano e ser professor em uma cidade com menor número de habitantes. Ou ser um profissional recém-formado incumbido dessa função e alguém com mais tempo de experiência docente”, ressalva.
As escolhas pela profissão também devem ser levadas em conta para analisar esse fenômeno, afirma Cardoso. “Há um profundo abismo entre as escolhas mais intencionais e as menos intencionais desse ofício, entre as escolhas que se configuram como opções de trabalho e aquelas que se apresentam como única alternativa possível e viável para a garantia da sobrevivência”, destaca.
Cardoso também aponta que os professores homens conseguem chegar a cargos vistos como “mais tranquilos” a partir do consentimento das próprias colegas. “Talvez as mulheres saibam que, na incompetência profissional para formar e, de certa forma, na ‘má vontade social’ dos professores homens em alfabetizar, a retirada deles de uma turma de alfabetização traz mais ganhos e benefícios para o trabalho delas do que perdas e prejuízos no cotidiano escolar”, supõe. “Isso evitaria um duplo trabalho das mulheres em alfabetizar as crianças das turmas delas para ainda fornecer ajuda aos professores com problemas em alfabetizar os alunos das salas deles. Essa hipótese favorece a interpretação de que as mulheres pensam de maneira estratégica e, de certa forma, ‘permitem’ que os homens abandonem mais facilmente a responsabilidade da alfabetização”.
A pressão cultural, econômica, histórica e social sobre os homens para que representem determinados tipos de papéis, em conformidade com o que se espera deles, acontece em igual medida na educação, explica Cardoso. Por isso, “os professores homens buscam, de alguma forma, tirar proveitos desse discurso de que a escola é um ambiente feminino, tanto proveitos pessoais como profissionais. Mas, nesse caso, essa não parece ser uma marca exclusivamente masculina”, reflete.
Descoberta
A decisão de Robinson Betiol, de trocar de profissão e começar a carreira docente aos 32 anos, não veio pautada em evitar a alfabetização, pelo contrário: ela está presente desde que começou a lecionar na Fundação Casa, em São Paulo. “Cheguei a ter alunos de 12 a 20 anos de idade na mesma sala, onde eu via a total carência paterna”, recorda. Foi em 2004 que ele iniciou o curso de pedagogia, motivado por um amigo e pela perda de uma filha em 2002. “Ela amava a escola e, como mudei de cidade depois daquele ano, decidi tentar fazer algo diferente da área de segurança particular; foi quando eu descobri minha vocação”, conta.
Atualmente, no período da manhã, Robinson dá aulas para o 5º ano do ensino fundamental em Mogi Guaçu (SP). À tarde, trabalha no reforço no contraturno, em Mogi Mirim, onde é um dos três únicos professores homens da rede. “As professoras falam ‘nossa, não vai dar mais pra gente conversar na hora do intervalo'”, brinca. “Para crianças a partir dos 6 anos eu procuro saber do que elas gostam, para despertar o interesse pelo letramento”, explica.
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