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Educação no Mundo

Diário de classe…mexicano

Com uma câmera na mão, alunos expõem as agruras do sistema educacional mexicano e provocam um debate nacional acerca dos possíveis caminhos para melhorar a qualidade da educação no país

Publicado em 05/12/2012

por Luciana Taddeo, de Buenos Aires






Durante oito meses, alunos da educação básica mexicana foram convidados a filmar sua realidade em sala de aula. As câmeras gravaram desde brincadeiras rotineiras a cenas graves, como um professor falando no telefone em horário de aula, mães queixando-se de faltas consecutivas de professores, ameaças de docentes para que alunos entreguem a lição e um jovem chamando um professor de “adulto estúpido”.


Assim, a obra ¡De Panzazo!, idea-lizada por uma associação civil chamada Mexicanos Primero, foi detonadora de um intenso debate sobre o sistema educativo mexicano. “Nossa ideia era que os estudantes participassem o mais ativamente possível das gravações, fazendo um diário de seu dia a dia, contando se gostam da escola, como fazem as tarefas, opinando sobre os professores, mas não no formato fechado de uma entrevista. Isso quebrou o gelo e nos abriu um panorama que acabou sendo o coração do filme”, afirma o diretor do documentário, Juan Carlos Rulfo, também autor de Carrière: 250 metros.
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Realidade escondida
“O que estão prestes a ver é muito duro. Permaneceu escondido por anos e tem gente muito poderosa interessada em que não se saiba”, introduz o filme, que intercala as gravações dos estudantes a entrevistas com professores, diretores escolares, pais de alunos, sindicalistas e autoridades do governo.

No México, passar “de panzazo” é uma expressão similar a “passar raspando”, em português. A sugestiva gíria explica o tom do filme, que enumera, por exemplo, que os mexicanos têm uma das piores performances entre os países avaliados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2009.
A narrativa utiliza estatísticas de 2010 do mexicano Instituto Nacional de Avaliação da Educação (INEE), que mostram a evolução da deserção escolar: de 100 alunos que iniciam o ensino primário, 45 concluem a educação secundária (destinada a alunos com idade entre 12 e 15 anos) e 27 terminam o período equivalente ao ensino médio dentro do tempo previsto. Somente 13 concluem a universidade e dois completam uma pós-graduação.

“Queríamos mostrar que isso não acontece por falta de financiamento nem de baixa capacidade de aprendizagem. O problema do sistema educativo mexicano é uma escola chata, que sufoca e não permite a expressão. A deserção escolar se deve à falta de recursos financeiros, mas o principal é a escola não responder adequadamente à vida desses jovens”, explica David Calderón, diretor-geral da associação Mexicanos Primero.


Um dos pontos insistentes ao longo dos 77 minutos do filme é a escassa avaliação de docentes, devido a pressões sindicais. Este seria o componente principal para uma má formação dos professores, que se adaptam a um sistema educativo baseado em repetições ditadas verticalmente. “No último exame, mais da metade dos professores foi reprovada. E nada aconteceu”, diz a narração.


Avaliação docente
Paralelamente à estreia do filme, a Mexicanos Primero iniciou uma campanha, em meios de comunicação locais, estimulando a população a exigir avaliações aos docentes mexicanos. Segundo Calderón, mais de 186 mil pessoas aderiram à campanha, enviando cartas ao governo federal. “Tivemos um papel protagônico nessa reivindicação. Precisamos ter um diagnóstico das necessidades do sistema educativo”, explica.


Não tardou para que o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educação (SNTE), o mais expressivo do país, com 1,5 milhão de afiliados, respondesse às críticas. A reação também chegou no formato de um documentário, intitulado El Afán Educativo (O Afã Educativo, em tradução livre). A dedicação dos professores nas regiões mais pobres do país, apesar dos baixos salários e da falta de recursos, foi o aspecto salientado na nova obra.


Neste filme, algumas das críticas se dirigem aos pais dos estudantes, que muitas vezes delegam a educação dos filhos exclusivamente à escola. “Apesar das carências, nos últimos anos, os críticos da educação dirigiram seus questionamentos aos profesores do SNTE, como se eles fossem os maiores responsáveis pela deficiente qualidade educativa”, diz a narradora, antes de iniciar um resgate dos avanços educativos dos últimos anos, como a distribuição gratuita de livros didáticos aos alunos.


Em contra-argumentação direta ao filme anterior, a obra mostra que alguns resultados mexicanos na prova Pisa de 2009 da OCDE são maiores que a média latino-americana. “Tecnicamente, a educação mexicana está ligeiramente abaixo do esperado em função da mescla social do país. Em um país com esta dimensão de inequidade, o que esperavam?”, questiona Juan Carlos Palafox Pérez de Salazar, consultor do Programa de Promoção da Reforma Educativa na América Latina e no Caribe, entrevistado no filme. “Em algumas ocasiões, uma nota seis vista de fora é ‘passar raspando’, mas de dentro, este seis é um dez”, completa uma coordenadora acadêmica.


Surpresa
Para o diretor de ¡De Panzazo!, sua obra contempla pontos de vista de diversos atores da educação. “Fiquei surpreso com as críticas de que atacamos os professores. Mostramos bastante o lado deles, que afirmavam que os pais dos estudantes não se responsabilizam pela educação e que existem tentativas de melhorar o ensino. Mas demos voz aos diretores que dizem que os profesores muitas vezes não gostam de receber ordens ou que muitas vezes iniciam a docência com problemas de ortografia”, afirma.


Apesar das críticas, o diretor e demais idealizadores do filme acreditam que o surgimento de outra obra cinematográfica como resposta foi um resultado positivo. “Sabíamos que muita gente não ia gostar, mas sempre nos propusemos a não minimizar nada. Tínhamos de mostrar, sem medo, uma parte da realidade como é, para gerar consciência de que alguma coisa está acontecendo com nossa educação”, garante Calderón, da Mexicanos Primero.


Especialistas concordam que a discussão detonada foi o grande mérito do filme dirigido por Rulfo. Dados governamentais de 2010 revelam que mais de 33 milhões de mexicanos com idade entre 15 e 39 anos apresentam “defasagem educativa”. O conceito inclui tanto analfabetos como pessoas que não concluíram o ciclo básico de ensino. Mesmo assim, a educação não era, até então, amplamente debatida no país.


O valor das provas
As simplificações da discussão, porém, são ressaltadas. “Em geral, o documentário não suscita uma reflexão crítica profunda sobre a problemática educativa. Exageram muito na questão de avaliar os docentes, como se isso resolvesse a baixa qualidade de educação no país”, acredita Sylvia Schmelkes, socióloga mexicana especialista em desenvolvimento educativo.


Para a pesquisadora, o filme recai em aspectos secundários, como o desconhecimento da Secretaria de Educação e do sindicato, da quantidade de professores do país. “É absurdo que um país como o México não tenha esta informação facilmente. Mas este questionamento desvia a atenção de pontos mais relevantes, como a maneira com que se avaliam professores e alunos”, avalia.


Os exames realizados por estudantes mexicanos ainda são muito centrados em conteúdos e a qualificação dos professores é atribuída, em grande medida, de acordo com este desempenho. “O que acaba regendo as aulas é a prova, infelizmente. Muito mais importante seria ensinar os estudantes a adquirir conhecimento, aprender a aprender, desenvolvendo capacidades criativas e críticas. A concepção da escola como transmissora de conhecimentos já se esgotou”, afirma.


Na mesma linha, o professor de política educativa na Universidade Iberoamericana do México, Pedro Flores Crespo, sustenta que a hipervalorização das qualidades da avaliação é um retrocesso. “Abusaram deste mecanismo ao tratá-lo como um fim e não como um meio. Escolas, editoras de livros didáticos e professores se concentram na preparação dos jovens para estas provas, e esquecem que o primordial é que os estudantes desenvolvam suas capacidades”, exemplifica.


A disparidade da qualidade educativa e de distribuição de recursos entre diferentes regiões do país também é outro ponto destacado por pesquisadores. Segundo eles, a prática transforma o sistema educativo em um meio de reprodução de desigualdades. Sylvia cita as escolas indígenas, que muitas vezes não contam com docentes profissionais. Presente em 24 dos 32 estados, a população originária representa cerca de 15% dos habitantes. A situação se repete em comunidades rurais e urbanas periféricas.


Ingerências sindicais
A descentralização da educação básica do país, que até 1993 era administrada pelo governo federal, foi realizada já com uma distribuição desigual de recursos às secretarias estaduais de Educação, segundo os analistas. Sem uma lógica para a divisão, muitas vezes esta é determinada por pressões do sindicato nacional. O organismo tem ingerência não só na distribuição de recursos financeiros, como na promoção e distribuição de vagas a docentes.


Em 2008, um concurso nacional passou a selecionar profissionais aptos ao trabalho docente. As vagas, no entanto, não são distribuídas em sua totalidade aos melhores posicionados no crivo, já que cerca de 50% delas são ocupadas automaticamente por critérios hereditários – filhos de docentes têm vaga garantida – ou por indicados pelo sindicato. O sistema, que prioriza relações familiares e sindicais em detrimento das habilidades profissionais para a atribuição de vagas, é alvo de permanente preocupação de especialistas.


Para Flores, o modelo educativo mexicano ainda não criou condições para a participação social nas decisões escolares. “Estudos demonstram que nosso sistema é autoritário, vertical e não permite a inovação. Isso cerceia qualquer possibilidade de pensamento crítico nas escolas. Houve iniciativas nesse sentido, mas nunca funcionaram. Uma ação conjunta dos pais, diretores e professores para debater, deliberar de maneira coletiva, poderia elevar o grau de aprendizagem dos estudantes”, argumenta.


Para que a participação se concretize, segundo Flores, é necessário que a legislação do país preveja a concessão de tempo aos pais, para que eles possam estar na escola para respaldar as iniciativas docentes. “Também é preciso que os pesquisadores atuem mais nas escolas, armando redes de investigação conjuntas com essas instituções. Para que a escola seja transformadora, a melhora da qualidade deve ser abordada por todos os grupos da sociedade. Somos um país que, apesar de todos os problemas, tem potencial”, afirma.

Autor

Luciana Taddeo, de Buenos Aires


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