Em uma casa de vila, localizada no tradicional bairro do Cambuci, em São Paulo, vive Paulo Emílio Vanzolini. Seu nome, consagrado pela composição de sambas clássicos – a maioria homenageando a cidade onde nasceu (em 1924) e vive -, também fez história e deixou um legado importante para a ciência brasileira. Vanzolini compôs Ronda e desbravou a Amazônia por 30 anos em um barco de pesquisa; compôs Volta por cima e dirigiu por cinquenta anos o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP); compôs Na boca da noite e ajudou a criar a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Escreveu poemas e foi um dos propositores da teoria dos refúgios, que explica a imensa biodiversidade na região amazônica.
Escreveu livros científicos (sua especialidade são os répteis) e livros literários, como Tempos de Cabo (Imprensa Oficial), no qual conta as histórias vividas no quartel, quando serviu no exército e fazia parte da boemia da região central de São Paulo. Um nome consagrado pela música, pelo amor à ciência, por grandes realizações e pela sensibilidade de quem vê poesia e música nas coisas do cotidiano.
Sentado em sua poltrona preferida, na sala de casa, Vanzolini recordou a infância. Recorreu à figura do pai durante toda a entrevista que concedeu à Quanta. “Era um homem de livros, que valorizava a educação”, diz. O pai do menino Paulo era professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e trabalhou como engenheiro para o governo. Sua casa era frequentada por pessoas importantes e ilustres, como o urbanista Prestes Maia. Paulo estudava em um colégio tradicional, o Rio Branco, onde teve um professor de língua portuguesa que o marcou muito. Sua paixão pelas letras foi algo nutrido pelo pai desde muito cedo. “O Mario de Andrade havia fundado a primeira biblioteca infantil do Brasil, que ficava a 50 metros do meu colégio.
Havia um jornal, chamado “A voz da infância”, do qual me tornei diretor, com 12 anos de idade. Foi aí que comecei a fazer sonetos”, conta. Na infância, além de livros, Vanzolini era um “moleque de rua”, como ele mesmo se define, aos risos. Bicicleta e bola eram as brincadeiras favoritas.
Répteis adorados
Perto de ingressar na faculdade, Vanzolini já sabia que queria ser zoólogo. E a certeza viera cedo. “Meu pai tinha ficado tão feliz porque eu havia entrado no ginásio com 10 anos que me deu uma bicicleta.
Pedalei até o Instituto Butantan, olhei as cobras e me apaixonei. Era aquilo o que eu queria fazer na minha vida. Uma vez por semana eu ia lá. O que me interessava era saber os nomes das cobras”, conta. E fez isso por um bom tempo. A equipe permitia que ele mexesse nas cobras não venenosas. Sua primeira lição prática? “Pegar o gancho, colocar na cabeça da cobra e segurá-la.”
Com o tempo, o interesse de menino começou a virar estudo. E foi assim que Vanzolini foi percebendo que havia um trabalho importante sendo realizado no Instituto, mas um tanto atrasado cientificamente na área de répteis. Ele contribuiu, ao longo de toda a sua vida, para a ampliação do acervo e para os avanços científicos da instituição. Ao falar do assunto, mencionou, com imensa tristeza, o incêndio ocorrido em 2010 que devastou um dos principais acervos de cobras, aranhas e escorpiões para pesquisas do mundo e o maior do Brasil. Mais de 70 mil espécies, conservadas em formol, foram queimadas. “Quando acontece uma catástrofe como essa, onde se queimam arquivos e uma coleção tão preciosa, a gente chora! Se você visse a coleção… Perdeu-se tudo. Algo que não se recupera. A história se foi. Eu não tive mais coragem de ir ao Butantan”, lamenta.
Grandes realizações
Paulo Vanzolini dedicou parte de sua vida científica a explorações na Floresta Amazônica. Estudando os répteis, na rotina de trabalho no Museu de Zoologia, escreveu uma importante obra sobre biodiversidade. Publicou, na década de 1970, suas pesquisas sobre a chamada Teoria dos Refúgios Florestais, que explica a imensa biodiversidade da Floresta Amazônica. Em síntese, a teoria diz que, devido a mudanças climáticas ocorridas na passagem de uma fase mais seca e fria durante o Pleistoceno terminal (12 a 18 mil anos atrás), as florestas tropicais ficaram retraídas às exíguas áreas onde ainda havia umidade. Assim, foram constituídos refúgios, nos quais a biota sofreu diferenciações resultantes do isolamento. “Nas minhas pesquisas, estudei os bichos amazônicos e vi que a distribuição deles se caracterizava muito bem com base naquela teoria”, conta.
E o que propunha em teoria, vivia na mata. Em suas incursões pela floresta, conhecia “a essência dos bichos, sua vida”. Ele precisava testemunhar aquilo que um animal em cativeiro jamais revelaria. “Tive muita sorte e muito apoio. Contava com um barco para as pesquisas.
Veja a vida que eu levava!”, ri. E, na embarcação, só entrava gente escolhida a dedo, os amigos “inteligentes”, pesquisadores como Vanzolini. Além de um cozinheiro de primeira – que fazia “uma sopa de piranha que valia a pena” – e um comandante. Ao longo dos anos, o cientista também conheceu os povos da floresta “Eles nos ajudavam a capturar os bichos e o dinheiro que pagávamos era importante para aquelas famílias”, lembra. Sobre sua vida na floresta, o cineasta Ricardo Dias produziu dois documentários: Os calangos do Boiaçu (1992) e No rio das amazonas (1995). Sua obra musical, porém, foi documentada no longa Um homem de moral (2009), do mesmo diretor.
Outra grande contribuição que ele deu à ciência do país foi a criação da Fapesp. Foi ele quem escreveu a lei que implantaria a primeira fundação de amparo à pesquisa do Brasil. Para isso, estudou a constituição do estado de São Paulo. Em um dos artigos, estava prevista parte do orçamento para o estabelecimento de uma fundação dessa natureza. Mas ninguém havia ainda criado. Era preciso uma lei ordinária. À época, o governador era Carvalho Pinto. Vanzolini conversou com ele e dali foi dado o aval para a formação de um grupo de trabalho. “Recentemente, fiquei sabendo que houve a revisão da lei e que ela foi considerada irretocável. Fiquei muito orgulhoso.”
Vida de estudante
Vanzolini fez sua graduação em medicina, mas nunca a praticou. Na época em que iria para a faculdade, ficou sabendo por meio de professores universitários, amigos da família, que os cursos na área de que gostava eram obsoletos, e que seria mais proveitoso cursar medicina, já mais avançada à época. Foi o que fez. Ingressou na USP em 1942. “Fui pelas cadeiras básicas e o resto eu empurrei com a barriga. Mas vi que foi acertado, porque, quando cheguei à Universidade de Harvard [nos Estados Unidos] para fazer o doutorado, fui dispensado de várias disciplinas por ter cursado medicina na USP”, lembra. Por isso, o pesquisador diz sentir imensa gratidão pela faculdade.
Na época de universitário, ele e seus colegas frequentavam as rodas boêmias da capital paulistana. Foi nessas ocasiões que encontrou inspiração para compor seus primeiros sambas. Em 1944, saiu da casa dos pais e foi trabalhar na Rádio América, em um programa chamado “Consultório sentimental”, da atriz Cacilda Becker. Em seguida, a convocação para o exército o fez interromper os estudos por dois anos. No retorno, passou a lecionar em um colégio particular e a trabalhar no Museu de Zoologia. Terminou a graduação em 1947 e casou-se no ano seguinte. E foi em 1949 que ele partiu para os Estados Unidos, onde fez o doutorado em zoologia.
E essa experiência traz ao cientista, até hoje, uma forte emoção. Ele conta, com orgulho, que lá teve a oportunidade de estudar e trabalhar com os maiores cientistas do mundo. “E eles foram muito bons para mim. Quando eu cheguei, eu tinha dinheiro para viver apenas por seis meses. Em uma semana recebi uma carta da universidade dizendo que eu teria uma bolsa de estudos”, conta. De lá, trouxe muitas informações que inspiraram seu trabalho no Museu de Zoologia, cuja direção viria a assumir por meio século. Mas ele também transmitiu conhecimentos. “Levei a minha metodologia de trabalho. Tínhamos um trabalho estatístico, organizávamos os estudos fazendo diferenciação geográfica. O trabalho que provou a teoria dos refúgios, inclusive, é de estatística”, diz.
Faz quase vinte anos que Paulo Vanzolini não visita o Museu de Zooologia de São Paulo, por motivos que guarda para si. A imensa biblioteca da instituição é recheada por centenas de títulos doados por ele. Saiu sem saudade e sem tristeza. Seu ciclo ali havia terminado. E partiu. “Quando termino, termino mesmo.”
Homem de moral
Nos Estados Unidos, o cientista teve sua primeira filha. Ele conhecera a primeira esposa, Ilse, quando ela trabalhava como secretária do reitor da USP. Foi uma relação em que ambos olhavam para horizontes diferentes. Para a esposa, Vanzolini, por trabalhar com gente importante e influente, poderia ter arrumado um emprego público, talvez em um banco. “Ela não conseguia enxergar o valor do que eu estava desenvolvendo.” Com Ilse, Vanzolini teve quatro filhas e um filho. Quando ela faleceu, os dois já estavam separados. Do relacionamento, guarda tesouros: a família. “Eu estou cheio de bisnetos”, comemora.
Hoje, Vanzolini é casado com a cantora Ana Bernardo. Durante a entrevista, enquanto a esposa procurava um livro do qual falava, ele confessou: “ela é meu pilar, não vivo sem ela”. Aos 88 anos, diz não ser um homem de rotina. É frequentador de bares e de restaurantes tradicionais em seu bairro. “Quando eu tenho vontade eu vou.”
Mora numa casa de vila – o sonho de consumo de qualquer paulistano que quer fugir das movimentadas ruas. Herança do pai, que comprou o terreno de um turco e construiu as casas. “Toda hora tem gente querendo comprar”, diz. Hoje, um de seus grandes passatempos é a leitura. Adora história do Brasil e aprova as recentes publicações sobre história feitas por jornalistas – e não historiadores. Acha a leitura agradável. Agora está lendo um livro sobre os crimes dos escravos.
E a música? Bem, hoje, ela faz parte da vida de Vanzolini porque, afinal, divide a vida com uma cantora, cujos ensaios em casa sempre foram motivo de deleite para o cientista-poeta. Aos fins de semana, quando ela se apresenta, Vanzolini está lá, apreciando a arte de sua companheira. Sua última composição foi Quando eu for, eu vou sem pena, de 1997. Desde então, não compôs mais. “A música ficava o tempo todo na minha cabeça. Larguei de fazer porque era obsessivo, ocupava muito do meu tempo”, conta. A obsessão foi marcada por um episódio específico: levou seis meses para decidir que palavra usaria para uma de suas rimas musicais.
Vanzolini é daqueles de riso fácil, e memórias incríveis. Gente que tomou os caminhos que quis. Um cientista que não foi só cientista. Um médico que foi zoólogo. Um produtor científico que fez literatura. Um homem que compôs sobre a gente e sua cidade – e parou quando teve vontade. Alguém que “cantava mal”, mas que tinha a melodia dentro de si. Definitivamente, um homem de moral.