De olho nas demandas por produtos e serviços, instituições de ensino e pesquisadores se movimentam para levar adiante os trabalhos acadêmicos
Publicado em 05/06/2013
De olho nas demandas por produtos e serviços aplicados a uma necessidade assistencial, e potencialmente comercial, instituições de ensino e pesquisadores se movimentam para levar adiante os trabalhos acadêmicos
por Luís Patriani
Desde o fim da década de 1960 discute-se na América Latina a importância do estímulo à cooperação entre universidades e empresas em favorecer o desenvolvimento econômico e social da região. Ao contrário dos países ricos, que naquela época já estavam inseridos nesse cenário em que as instituições de ensino transformaram seus sistemas de produção de conhecimento, ciência, tecnologia e qualificação para o trabalho, as nações emergentes ainda se mostram fiéis ao velho modelo de exclusividade para o ensino e a pesquisa de mérito.
No Brasil, um novo cenário vem se estabelecendo, apesar de muitos atores, seja do lado dos pesquisadores ou do setor empresarial, alimentarem preconceitos que, aliados à burocracia, emperram uma aproximação maior desse vínculo e o desenvolvimento de inovações para o crescimento do país. Se por um lado opositores das parcerias destacam perigos como o redirecionamento da pós-graduação para atender aos interesses das indústrias, desvirtuamento da gestão acadêmica ou de objetivo das pesquisas, por outro, diferentes formas de estruturação dos projetos se revelam em acordos de cooperação que traduzem um novo conceito: a extensão dos conhecimentos por meio da comercialização das pesquisas.
Cooperar dá certo
O vínculo entre a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e o Instituto Butantan é um dos exemplos da aplicação dos projetos de pesquisa desenvolvidos em favor da sociedade. Foi a constante morte de artrópodes no momento da extração do veneno que motivou a aproximação dos pesquisadores da universidade com o instituto, ao desenvolverem o eletroestimulador microcontrolado para extração de veneno em artrópodes, um aparelho elaborado por cinco alunos do curso de engenharia elétrica sob a orientação de dois docentes do Departamento de Engenharia da Faculdade de Ciências Exatas e Tecnologia da PUC-SP. A invenção permite coletar o veneno de aranhas, escorpiões e lacraias sem estressar ou machucar os animais.
“Trata-se da primeira solicitação de patente em nome da Fundação São Paulo (Fundasp, a mantenedora da PUC), em 67 anos de universidade”, celebra o professor Aparecido Sirley Nicolett, um dos orientadores do projeto.
Nicolett conta que, até então, não havia um setor específico dentro da universidade para acompanhar esse tipo de processo, mas desde o início de 2012, trabalhando com a Fundasp e a empresa Village Marcas e Patentes, foi possível dar andamento à elaboração dos documentos e pedido de depósito da patente. “Todo o processo foi de aprendizado e aprimoramento. Agora, uma vez que foi criado o caminho, vários projetos desenvolvidos por nossos alunos e professores poderão se tornar produto”, completa.
O registro no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) foi feito em nome da fundação, dos orientadores responsáveis pelo projeto (Nicolett e a professora Rosana Nunes dos Santos) e dos alunos que desenvolveram o equipamento durante seu trabalho de conclusão de curso, em 2009 (Artur Augusto Martins, Gisele Braga Gonçalves Alves, Rafael Monteiro, Ricardo Souza Figueredo e Sidnei Pereira).
De acordo com Ely Tadeu Dirani, coordenador de pesquisa da PUC-SP, o problema agora é a finalização do processo do registro da patente para conseguir comercializar o projeto, apesar de a faculdade ter o comprovante definitivo do depósito, o que permite o uso do equipamento sem fins lucrativos. “Nos Estados Unidos, por exemplo, as patentes demoram, no máximo, dois anos para serem concedidas. Aqui no Brasil o processo dura até oito anos. O mercado não aceita este tempo. É um desestímulo para os pesquisadores, sejam eles alunos ou professores, que preferem publicar seus trabalhos em revistas científicas a correr atrás de patentes para produzir suas ideias.”
Além disso, Dirani, que também atua como pesquisador na Escola Politécnica da USP, afirma que o Estado não pode apenas se restringir a financiar projetos acadêmicos, como é o caso da Fapesp, que nos últimos dez anos financiou mais de trezentas patentes, mas também precisa criar mecanismos para incrementar a cooperação com a indústria. “É preciso facilitar às empresas a contratação de mestres e doutores. No Brasil, cerca de oitenta por cento trabalham na universidade. Nos Estados Unidos e na Coreia do Sul esse número se inverte, com mais de dois terços desses profissionais produzindo para as empresas, que investem muito mais do que as daqui.”
Ação da universidade
Apesar dos entraves burocráticos e do preconceito na relação universidades versus empresas, Dirani enaltece o recente esforço das entidades de ensino superior para dinamizar a relação com o setor produtivo. “Aqui na PUC há uma reforma em curso para incentivar a pesquisa dos docentes e dos alunos. Começa pelo aumento de bolsas que reduzem o tempo dos professores na sala de aula para se dedicarem às pesquisas, passa pela criação de núcleos de tecnologia na garantia de patentes, assim como o ordenamento jurídico e o suporte técnico no encaminhamento dos pedidos de patentes”, conclui.
Segundo o coordenador de pesquisa da PUC-SP, posto isso, diferentes acordos na comercialização dos projetos podem ser estabelecidos, a exemplo do aluguel da ideia cobrando-se royalties, na venda, ou mesmo na parceria com empresas que podem manter o vínculo por meio do financiamento das pesquisas. No caso do equipamento aprovado pelo Instituto Butantan, que foi usado por dois anos em fase de testes e deve ganhar agora a solicitação de novas unidades, o provável caminho é a negociação com alguma empresa para a sua produção. Além disso, a tecnologia atingiu outras aplicações compartilhadas por outros pesquisadores, sendo empregada na pesquisa “Efeitos do veneno do escorpião Tityus paraensis em camundongos”, realizada no Pará pelas Faculdades Integradas de Tapajós (FIT) e o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxinas (INCTTox).
“O objetivo de um trabalho é disseminar um instrumento de extrema importância científica e que será útil para a sociedade”, afirma Nicolett, que comemora ainda o andamento de outros três pedidos de patente na área de tecnologia assistiva.
Passo empreendedor
A área de tecnologia assistiva, com recursos, equipamentos e serviços desenvolvidos para prover algum tipo de assistência ou reabilitação das pessoas com alguma deficiência física, ganha destaque entre os pesquisadores. A produção de tais inovações, além de ser gratificante para os pesquisadores por oferecer algum benefício para a sociedade, também chama a atenção pela viabilidade comercial dos projetos.
Impulsionado pela inclusão de pessoas com deficiência visual, o então aluno de ciência da computação na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) Evandro Rodrigues, de 26 anos, desenvolveu para o seu trabalho de conclusão de curso um software leitor que fornece aos usuários informações sobre os produtos em áudio. “Eu queria aplicar no meu trabalho de conclusão algo que pudesse usar o conhecimento adquirido durante a graduação e direcioná-lo para algum tipo de necessidade da sociedade. Aí um funcionário da universidade, que tem deficiência visual, falou da dificuldade que tinha de fazer coisas simples, como ir ao supermercado. Então, surgiu a ideia de desenvolver o software”, diz Evandro, que trabalha atualmente em um projeto multidisciplinar como dissertação de mestrado, o qual envolve as áreas de tecnologia computacional, fisioterapia e saúde.
No caso do leitor de produtos, o software já foi testado em notebooks e avalizado por deficientes visuais, mas ainda há a necessidade de portar o sistema para rodar em dispositivos móveis, entre outros ajustes para aperfeiçoar a utilização do programa. “Eu não me preocupo em ter a patente logo, até porque sei que esse é um processo que pode demorar anos. Quero dar continuidade ao projeto para depois abrir uma empresa para torná-lo comercial”, conclui Evandro.
De acordo com o professor Rolf Fredi Molz, que orientou o trabalho, a iniciativa de Evandro é fruto de uma nova realidade em transformação nas universidades brasileiras. “Na Unisc dispomos do NITT (Núcleo Inovação e Transferência de Tecnologia), departamento responsável pelo registro e encaminhamento das patentes e a incubadora de tecnologia, que subsidia o desenvolvimento de produtos”, conta.
Apoio financeiro
O estímulo da instituição para que projetos se desenvolvam para além da fronteira acadêmica é fundamental para ampliar as relações entre ciência e sociedade. Em coro com as novas políticas e práticas administrativas, acadêmicas e curriculares das entidades de ensino superior, a Faculdade Anhanguera de Joinville se utiliza do artigo 170 da Constituição estadual de Santa Catarina, que prevê bolsas de estudos e recursos para a pesquisa, para alavancar projetos desenvolvidos dentro da unidade catarinense.
No caso da Anhanguera, o incentivo à produção científica vem do setor de Atividades Práticas Supervisionadas, que frequentemente desafiam os alunos a elaborar projetos que assessorem a comunidade, e de convênios com empresas. “Desenvolvemos cerca de cinquenta por ano”, afirma Edson Reis, diretor da faculdade em Joinville. Ele ressalta as áreas de engenharia, gestão e administração como as de maiores demandas.
Graduação utilitária |
Batizado de SystemMuhila, um software voltado para a área da saúde irá contribuir com o atendimento hospitalar público em Angola, país onde apenas uma pequena fração dos 20 milhões de habitantes recebe atenção médica. O projeto foi desenvolvido pelo aluno angolano Pármenas Eurico, que cursa tecnologia em análise e desenvolvimento de sistemas na Faculdade Anhanguera de Joinville. “Conheço de perto a realidade daquele lugar e por isso criei algo que pudesse transformar a situação”, destaca o aluno, que esteve recentemente em Angola para viabilizar a implantação do projeto, na cidade de Lubango. O estudante agora vai fazer as adaptações necessárias ao software e buscar o apoio de empresas para financiar a sua efetiva implantação. |
Da academia para o mercado |
A demanda pelos projetos de pesquisa desenvolvidos no âmbito das instituições de ensino percorre diferentes áreas e atrai o interesse de empresas e outros centros no mundo inteiro, como no caso do eletroestimulador microcontrolado para extração de veneno em artrópodes, desenvolvido por alunos e professores da PUC-SP para o Instituto Butantan “Há interesse pelo projeto vindo tanto de pesquisadores brasileiros como de centros da Turquia e do Panamá”, diz o professor da PUC-SP Aparecido Nicolett. O sucesso se deve a duas características do aparelho, que permite se adequar às características físicas de cada animal, controlando a intensidade de corrente elétrica que atravessará a aranha, o escorpião ou a lacraia, por exemplo. Com o controle em tempo real dos estímulos elétricos aplicados, diminui-se a mortalidade dos animais e eles podem ser utilizados novamente no futuro; isso diminui a necessidade de obter novos espécimes e aumenta a eficiência na coleta dos fluídos. “Tinha escorpião que dava três extrações durante sua vida útil e passou a doar seis, ou seja, com o mesmo animal foi possível dobrar a produção de soro”, exemplifica. Outro diferencial é a portabilidade do aparelho, que pode ser utilizado no hábitat dos animais (sem a necessidade de recolhê-los para os laboratórios). |