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Entrevistas

Reforma em crise

Diante de resultados pouco animadores, crescem as resistências aos "reformadores educacionais empresariais" nos Estados Unidos, exemplo das reformas liberais das últimas décadas

Publicado em 07/02/2014

por Cristina Charão

Em junho de 2013, a publicação de uma declaração pública assinada por dezenas de educadores, acadêmicos, pais e sindicalistas dos Estados Unidos deixou claro que o conflito entre alguns setores da sociedade civil e as organizações ligadas ao setor privado marca o debate em torno das políticas educacionais em todo o mundo e, especialmente, no país que se tornou exemplo das reformas liberais das últimas décadas. Na carta An Education Declaration to Rebuild America – Uma declaração educacional para reconstruir a América, em tradução livre –, o grupo de ativistas denuncia o que considera “uma traição” dos princípios democráticos da escola pública no país. De acordo com o texto, as sucessivas políticas baseadas em testes padronizados e medidas punitivas, somadas aos frequentes cortes orçamentários, fizeram a escola pública norte-americana um espaço “sem criatividade ou graça” e permitiram segregar novamente as escolas por raça e classe social.

O texto não menciona diretamente os atores privados envolvidos no processo de aprovação e implementação das políticas, mas para analistas como Stan Karp, editor da organização Rethinking Schools, não há como separar a adoção destas medidas da atuação do que chama “reformadores educacionais empresariais”. Incluídos neste grupo estão as grandes corporações estadunidenses e os institutos e fundações a elas ligados. Na entrevista abaixo, Karp analisa o momento político da disputa entre os grupos que defendem as reformas atuais e as razões para que movimentos de resistência estejam em alta no país.

Avaliações de larga escala, escolhas pedagógicas dirigidas por testes, recompensas por desempenho e melhor gestão de recursos são termos bastante familiares a diversos sistemas educacionais ao redor do mundo. O que sustenta estas políticas?
Testes padronizados são o motor principal da reforma empresarial. São usados para promover a padronização estreita dos currículos e das práticas escolares e esgarçar o tecido do processo de ensino-aprendizagem, de forma a transformar a profissão de professor e criar equipes menos seguras, menos estáveis e mais baratas. Além de mudar a maneira como as escolas e as salas de aula funcionam, os objetivos das grandes corporações refletem-se nos ataques às negociações coletivas feitas pelos sindicatos de professores e na permanente crise de financiamento da educação. Estas políticas minam a educação pública e facilitam a sua substituição por um sistema de mercado, que fará pela educação o que o mercado já fez na saúde, na habitação e no emprego: produzir lucros e oportunidades fabulosos para alguns e acesso e resultados desiguais para muitos.

A publicação da carta An Education Declaration to Rebuild America tornou-se um símbolo da resistência do modelo de educação proposto pelos chamados “reformadores empresariais”. Em que contexto ela surge?
Nos Estados Unidos, foram necessários mais de cem anos para criar um sistema público de educação que, apesar de todos os seus problemas, oferece educação gratuita para todas as crianças como um direito legal. Foram necessárias campanhas contra o trabalho infantil, cruzadas por tributação pública, lutas contra a discriminação de imigrantes, movimentos históricos por direitos civis contra legislações que criavam a segregação e a desigualdade na escola, movimentos por direitos iguais e acesso das mulheres à educação e, nas últimas décadas, repetidas jornadas a favor dos direitos de estudantes com deficiência, gays e lésbicas, bilíngues e indígenas. Todas estas campanhas seguem em aberto e as vitórias alcançadas são assimétricas e frágeis. Mas todas elas também ajudaram a fazer com que a escola pública fosse um dos últimos lugares onde a população norte-americana – crescentemente diversa e dividida – continue a se encontrar com um propósito cívico comum. Em alguns aspectos, a educação pública é nossa instituição democrática mais bem sucedida e fez mais para reduzir iniquidades, oferecer esperança e oferecer oportunidades do que as instituições financeiras, econômicas, políticas e midiáticas do país. O que está em questão neste debate sobre a reforma educacional em curso é se o direito por educação pública e gratuita para as crianças irá sobreviver como um compromisso democrático fundamental em nossa sociedade. O que está em questão é se as escolas que os distritos [governos locais] precisam ofertar sobreviverão como instituições públicas, de propriedade coletiva e geridas democraticamente, ainda que de forma imperfeita, por todos nós como cidadãos, ou serão privatizadas e comercializadas pelos interesses empresariais que dominam cada vez mais vários setores da nossa sociedade.

A carta é um sinal de que estas políticas estão se exaurindo nos Estados Unidos. Quais os principais sinais dessa exaustão?
A coalizão bipartidária que, em 2002, deu suporte à aprovação da principal lei federal voltada à promoção das avaliações e punições – o programa No Children Left Behind (NCLB) – entrou em colapso. Esforços para rever e reautorizar a lei estão parados há mais de cinco anos. Em todos os 50 estados, tramitaram leis para reverter ou anular partes chave do programa. Nas três maiores cidades do país – Nova York, Chicago e Washington DC, onde as reformas foram implementadas de forma mais ampla – o fracasso foi tal que levou a uma rejeição popular destas políticas, incluindo nas eleições para prefeito. Nas três cidades, os políticos “pró-reforma” foram substituídos por seus opositores e, em Chicago, registrou-se uma greve de professores com forte apoio dos pais e da comunidade.

Estes são sinais políticos… Mas quais os resultados alcançados pelas políticas adotadas a partir de 2002?
Em termos de resultados, não se materializou a promessa dos reformadores de melhorias no desempenho acadêmico e de superação das lacunas de acesso e resultados. Um relatório feito pela organização Advacement Project mostrou que, desde a aprovação da NCLB, 73 dos 100 maiores distritos nos Estados Unidos “viram as notas de seus graduandos caírem – muitas vezes acentuadamente. Destes 100 distritos, que atendem 40% de todos os estudantes negros dos Estados Unidos, 67% não conseguiram formar dois terços dos seus alunos. Em outras palavras, desde o boom dos testes altamente padronizados, muitos dos estudantes que se encontravam em risco de não se formar foram empurrados para fora da escola.” Além disso, desde 2004, cerca de 4 mil escolas públicas tradicionais foram fechadas, enquanto o número de escolas financiadas publicamente, mas gerenciadas por organizações privadas [as charter schools] cresceu em 50%. Isso tem aumentado a segregação e diminuído o financiamento especialmente em comunidades mais carentes.

Qual a agenda dos “reformadores empresariais” neste momento?
A educação pública nos Estados Unidos representa um mercado de US$ 700 bilhões em investimentos governamentais que, historicamente, esteve protegido da privatização e dos interesses comerciais e que está ligado a um grupo de trabalhos fortemente sindicalizado. O atual movimento pelas reformas busca usar a “crise fabricada” do “fracasso” escolar para substituir as escolas públicas com financiamento público pelas charter schools. Também visa utilizar os resultados das avaliações baseadas em testes para atacar os direitos profissionais e sindicais dos professores, criando relações de trabalho baseadas nas regras de mercado.

Como a sociedade civil norte-americana e a Academia estão respondendo a esta agenda e como estão se organizando para se opor à força política dos “reformadores empresariais”?
Diferentes setores têm se organizado e se manifestado. Isso inclui o surgimento de organizações locais de pais contra os testes, o fechamento de escolas e os cortes orçamentários. Em relação aos professores, a greve já citada em Chicago, no outono de 2012, tinha relação com reformas sindicais. E há cada vez mais protestos de professores contra os esquemas de avaliação baseados em testes. Em Seattle, no ano passado, os professores recusaram-se a aplicar um teste padronizado especialmente falho, produzido comercialmente. Eles receberam apoio local e nacional de pais e alunos, além de outros professores, e iniciaram uma crescente onda de protestos e resistência. Também há uma resistência política e ideológica robusta contra a agenda reformista, mas que ainda precisa dar origem a uma formação política que possa disputar o poder e promover mudanças na direção das políticas educacionais. Mas há sinais de mudanças.

 

Autor

Cristina Charão


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