NOTÍCIA
Casal de estrangeiros cria escola no meio da Amazônia, supera analfabetismo, falta de professores e ensina por meio de um método próprio de alfabetização
Publicado em 04/06/2014
“Foi uma pergunta que abriu uma porta que nunca mais fechou.” Assim Paul Clark explica o nascimento da escola Vivamazônia, a única a funcionar com regularidade no rio Jauaperi, afluente do rio Negro-Amazonas, num raio de 500 quilômetros do município de Novo Airão (AM). A pergunta, na verdade, era um pedido do caboclo Waldemar ao casal de amigos estrangeiros: que o escocês Paul, 54, e sua mulher italiana Bianca Buonvicini, 49, alfabetizasse ele e seus 11 filhos. O casal tinha recém-chegado à Amazônia e ainda estava aprendendo a falar português. Viram na proposta uma maneira de aprender a nova língua ensinando, e de retribuir a gentileza recebida dos ribeirinhos até então. O que não imaginavam era que o trabalho pedagógico se tornaria a missão de suas vidas. Hoje, 20 anos depois, a escola devidamente regularizada junto ao Ministério da Educação ensina, em média, 14 crianças do Ensino Fundamental I por ano.
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Metodologia das cores
Paul é licenciado em literatura francesa e já havia dado aulas de inglês. Bianca é formada em artes plásticas, mas nenhum dos dois tinha formação pedagógica. Em 2008 prestaram concurso público e tomaram posse no ano seguinte como professores do Ensino Fundamental I da zona rural.
A metodologia para alfabetizar e ensinar as crianças nasceu intuitivamente e foi construída de acordo com a necessidade apresentada por cada aluno. Quando começaram, eles não tinham sequer cadernos e lápis e, algumas vezes, chegaram a ensinar desenhando na areia. Bianca usou sua formação artística e introduziu primeiro o desenho, depois o conto, e devagar foi estudando a melhor maneira de ensinar.
Diante da dificuldade das crianças em aprender com os livros que chegavam à escola, o casal criou uma metodologia de alfabetização por associação de cores. Estabeleceram um código segundo o qual cada vogal é associada a uma cor e a sílaba segue correspondendo a essa vogal. Por exemplo: a vogal A tem a cor vermelha, então, por associação, as palavras com sílabas com essa letra – BA, CA, DA… – assumem a mesma cor.
Outra dificuldade era que os livros tinham referências completamente distantes da realidade daquelas crianças. Num estudo sobre bacias hidrográficas, o livro de geografia apresentava fotos de geleiras. No livro de português, as histórias eram de Portugal. O casal passou, então, a confeccionar seus próprios livros – com o método de cores e histórias da região. Orientados pelo casal e seguindo a metodologia, os alunos escrevem, desenham e pintam uma história nos livros. Nos anos seguintes, os materiais são reutilizados por outras turmas de alfabetização.
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Dificuldades e abandono
A maior dificuldade dos alunos da região consiste em dar continuidade ao estudo: quando se formam na Vivamazônia, concluindo o Fundamental I, precisam ir para outra escola e se deparam com a triste realidade das escolas na zona rural.
A maioria das escolas se encontra em péssimas condições estruturais, com goteiras e paredes caindo. E, em geral, não contabilizam nem 40 dias de aulas letivas no ano – o mínimo exigido pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) são 200 dias. Não é novidade para as comunidades ribeirinhas do município de Novo Airão a falha no sistema de entrega da merenda e da gasolina usada nos barcos para buscar os alunos. O material didático muitas vezes também não é enviado, obrigando os alunos a usarem os livros do ano anterior para não pararem de estudar.
Com condições tão precárias de ensino, sem material didático, escolas a ponto de cair, os professores, por falta de estrutura, muitas vezes dormem nas próprias escolas. Segundo o novo secretário de Educação, Genivaldo Batista Rodrigues, no cargo desde dezembro do ano passado, um dos agravantes é que os professores chegam muito despreparados para enfrentar as dificuldades específicas do local, e na maioria das vezes desconhecem a cultura das comunidades ribeirinhas. Quando retornam para a cidade para buscar o salário, que muitas vezes atrasa, acabam não retornando mais. O secretário diz que encontrou a zona rural desacreditada, pelos professores e pela própria comunidade.
Genivaldo confirma todas as histórias, desde as mais surpreendentes – como a de líderes da comunidade que ficam com parte da gasolina destinada ao transporte das crianças para si –, desvio de merendas, e os atrasos no salário dos professores. “Nós estamos trabalhando com produtos muito cobiçados na zona rural, que é a comida e a gasolina. Isso vale ouro aqui, e eu ainda não sei como evitar que isso aconteça”, diz referindo-se aos desvios. Ele afirma que, apesar da vontade, sabe que reverter esse cenário é um trabalho de longo prazo e não tem como prever quanto tempo ficará no cargo.
Histórias criadas
O método de Paul e Bianca permitiu o acesso à leitura e à escrita e, mais importante, levou autoconfiança para os alunos na alfabetização. Segundo Paul, as crianças tinham muita vergonha de errar e a metodologia das cores facilitou a visualização e deu segurança no aprendizado. Caroline Laranjeira de Lima, de 12 anos, conta que antes de estudar na Vivamazônia era muito calada e sozinha. “Lá é diferente, aprendemos com música e pelas cores. Nas outras escolas, a gente escreve, escreve, passa o dia inteiro escrevendo.”
Yara Clarck, 19 anos e filha do casal, nasceu no Brasil e foi alfabetizada na Vivamazônia junto com as outras crianças. Hoje, por iniciativa própria, ajuda os pais duas vezes por semana na escola. “Algumas vezes penso em outros caminhos para ensinar, mas vejo que esse é realmente o mais rápido e eficiente”, diz.
Além de estarem presentes nos livros e na metodologia, as cores também estão nas paredes, desenhadas e pintadas pelos alunos e pela professora Bianca. Ao chegar à escola encontramos pequenas sandálias na porta – como é costume na região para evitar a terra entrar nas casas. Subindo as escadas da construção de palafitas encontramos todos sentados no chão, professores e alunos. As aulas ainda são ministradas no quadro-negro. Alguns bancos de madeira, coloridos e desenhados com temáticas amazônicas, são usados como mesas para escreverem. O ambiente é simples, mas extremamente acolhedor.
Algumas histórias dos livros são inventadas pelos alunos, como a do boto que namora a pirarara (um tipo de peixe). Outras são reproduzidas com base nos relatos de seus pais e familiares. “Nossa intenção inicial era, por meio da escola, tentar preservar a cultura local, que na época já parecia se perder”, constata a professora. Paul acredita que a educação é a única maneira de preservar a cultura ribeirinha e reverter a influência da televisão nessas comunidades. “As crianças que antes pescavam, plantavam, acompanhavam seus pais na mata aprendendo tudo sobre a floresta hoje saem da escola e passam a tarde na frente da televisão”, conta Paul.
Futuro
Durante os 20 anos de existência da Vivamazônia, o casal venceu muitas barreiras: oficializaram a escola no Ministério da Educação, passaram no concurso público para professor e a escola nunca fechou. “Mesmo quando eu tive um problema grave de saúde optamos pelo Paul ficar e eu ir me cuidar na Itália porque sabíamos que, se saíssemos, a escola fecharia”, diz Bianca. O casal diz que enfrenta algumas resistências, já tendo sido ameaçados de morte, especialmente pelo trabalho de preservação de quelônios (veja box). “Em geral o caboclo não pensa no amanhã. Ele quer comer hoje, não quer saber se o que ele faz hoje pode implicar não ter mais peixe ou tartaruga no futuro”, diz Bianca.
Quando questionados sobre por que continuar buscando meios alternativos e lutando para manter a Vivamazônia, mesmo com tantas forças contrárias, Paul diz que a ideia era conseguir mostrar que era possível ter uma escola de qualidade no interior da Amazônia e assim o governo replicaria o modelo. Não aconteceu. “Hoje o importante é a criança. Se eu conseguir salvar ao menos uma da fragilidade do analfabetismo, já estou satisfeito”, diz Paul.
Apesar de não gostarem de falar muito de si e sempre direcionar a conversa para a Vivamazônia, a determinação e a vocação do casal é, sem dúvida, o que sustenta os pilares dessa escola. “Educação para mim é liberdade, é abrir as portas, tornar-se dono da própria vida. É a única maneira de garantir seus direitos e o próprio mundo”, diz Paul, com o aval da esposa Bianca.
Italianos ajudaram até crise europeia | |
A escola Vivamazônia está localizada a dois dias navegando de barco de Manaus, num local antes conhecido como Igarapé do Gaspar. Foi aberta e regularizada em 1998, como escola anexo da escola São Pedro, a 1h40 min do Gaspar. É para lá que os alunos vão quando se formam no 5º ano. A escola e mais duas casas – uma para o casal Paul e Bianca e outra para Waldemar e sua família – foi construída com a ajuda financeira de um grupo de amigos italianos, que formou a Associação Vivamazônia. A contribuição mensal – realizada com economias pessoais – manteve a escola desde seu nascimento até meados de 2008, no auge da crise europeia. Com a interrupção da ajuda dos amigos italianos, a escola ficou desamparada por um período. Foi quando uma empresa de ecoturismo de Novo Airão, que fazia roteiros próximo à região, apareceu em 2010 e desenvolveu um roteiro exclusivo onde os turistas têm a possibilidade de conhecer e conviver com os alunos e, assim, assumiu a escola como um dos projetos. sociais da empresa. |
Ativismo ambiental | |
A realidade local sempre foi o pano de fundo para a educação na escola Vivamazônia. As matérias obrigatórias são introduzidas por meio da realidade vivida pela comunidade. São tratados desde os mais simples temas, como a visita de uma pequena cutia órfã até questões ambientais mais sérias, como a pesca predatória, a criação das reservas extrativistas e a extinção dos quelônios (tartarugas de todos os tipos) na região. Diante da situação de quase extinção dos quelônios, Paul foi para a capital Manaus estudar como recolher e cuidar dos ovos de tartaruga e outras espécies da região. Desde 2003, passa três meses por ano, com ajuda de Waldemar, recolhendo os ovos na madrugada, mais dois meses cuidando dos filhotes até que se desenvolvam para então soltá-los numa manhã de aula de ciências. Os alunos participam de tudo, aprendendo como fazer. São soltas 500 tartarugas, o que ele considera um ato simbólico, pois a maioria delas morrerá – naturalmente ou por pesca predatória – antes de atingirem idade adulta. “A escola é a única maneira de introduzir uma consciência de preservação ambiental dentro da comunidade” diz Paul. E parece que tem surtido efeito: este ano um ex-aluno da escola e alguns moradores se uniram na coleta dos ovos e já se escuta crianças ensinando seus pais acerca da importância da preservação do meio em que vivem. |