NOTÍCIA
A alfabetização de surdos no Brasil tem como barreira não apenas a falta de estrutura nas escolas regulares, mas também o preconceito contra a Língua Brasileira de Sinais
Publicado em 04/06/2014
Escola pública bilíngue de São Carlos: classes exclusivas até o 5° ano e inclusivas a partir do 6° ano |
Se a língua portuguesa na modalidade oral é a base para o letramento de crianças ouvintes, no caso de crianças surdas esse papel é desenvolvido pela língua de sinais. No entanto, a aquisição do português escrito por crianças surdas, em muitos casos, ainda segue os mesmos passos e materiais utilizados com as crianças falantes de português, relatam pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco em estudo sobre a relação entre a língua de sinais e o processo de alfabetização de crianças surdas.
De que forma, então, as crianças surdas se apropriam da língua portuguesa escrita? Sabe-se que esse é um processo mais complexo, já que, no caso da criança surda, o domínio da língua escrita ocorre pelo canal visual. A unidade mínima da palavra (fonema), por exemplo, não faz sentido para o indivíduo surdo.
Os pesquisadores dão o seguinte exemplo: o ouvinte associa o som do fonema /s/ com a escrita da palavra sapo. Já para o surdo, a escrita da palavra sapo nada tem a ver com a configuração de mão que é usada na composição do sinal da palavra sapo. Isso, obviamente, dificulta o aprendizado da língua portuguesa pelo sujeito surdo.
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Idealmente, no caso de crianças surdas, a alfabetização deveria ocorrer depois do aprendizado da Língua Brasileira de Sinais (Libras), ou seja, como um segundo idioma. Esse cenário parte do princípio de que elas aprenderiam Libras em casa, com a família, como ocorre com a linguagem oral no caso das crianças ouvintes. Mas, principalmente quando se trata de filhos surdos de pais ouvintes, isso muitas vezes não ocorre, observam as pesquisadoras Ronice Müller de Quadros, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Magali L.P. Schmiedt no texto Ideias para ensinar português a alunos surdos. Na falta dessa base, quando o ensino do português ocorre quase ao mesmo tempo que o de Libras, algumas estratégias visuais devem ser priorizadas, como o uso de figuras, palavras impressas em português, vídeos e objetos, entre outros.
Para a fonoaudióloga Cristina Lacerda, professora de pós-graduação em Educação Especial na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), o maior problema de uma criança surda em uma escola regular é o fato dela não ser usuária da língua portuguesa. Como na escola regular todos os conteúdos são mediados pelo português, a criança pode ficar excluída do processo educacional. No caso das crianças com deficiência auditiva que chegam à escola ainda sem fluência em Libras, a presença de um intérprete também seria uma medida pouco eficaz, argumenta Cristina.
Segundo o Ministério da Educação, as escolas de Educação Básica precisam garantir a alunos surdos o ensino de Libras e da modalidade escrita da língua portuguesa, com professores bilíngues na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, além de intérpretes de Libras nas séries seguintes.
Idealmente, essa população em idade escolar poderia se encaixar em dois modelos educacionais: escolas inclusivas, em que um intérprete traduz para Libras a aula dada em português, e escolas bilíngues, em que surdos assistem a aulas ministradas em Libras. Esta opção conta com a preferência de parte dos especialistas, que consideram a linguagem de sinais a primeira língua para surdos. Mas a questão é controversa pela oposição dos que defendem a ênfase na oralidade como forma de inclusão de surdos e deficientes auditivos graves.
Formação de professores
Apesar de a legislação prever que toda escola de Educação Básica deve ofertar o ensino de Libras e também da língua portuguesa (como segundo idioma) para alunos surdos desde a educação infantil, a realidade ainda não é essa.
“Falta qualificação dos profissionais da educação infantil e nas séries iniciais da educação fundamental para o atendimento adequado desse alunado e salas de Atendimento Educacional Especializado (AEE) com apoio pedagógico aos alunos surdos”, explica Arlete Marinho Gonçalves, professora da disciplina Concepções e Métodos de Ensino de Surdos do curso de pedagogia da Universidade Federal do Pará.
As salas multifuncionais de AEE são obrigatórias desde 2011, a partir do Decreto 7.611. Elas são concebidas para dar suporte ao aluno da educação especial, com apoio pedagógico, mobiliário e recursos de acessibilidade e materiais didáticos compatíveis com as especificidades do aluno com deficiência. “Essas ações são necessárias para que a condição linguística do surdo seja respeitada nos processos de alfabetização, considerando a Libras como sua primeira língua e o português como a segunda”, afirma Arlete.
Nas escolas que possuem a sala de AEE, as crianças surdas são matriculadas na sala regular e no contraturno na sala do AEE, onde contam com o apoio pedagógico de profissionais formados na área, e na sala regular, com o apoio de um instrutor de Libras. Hoje, contudo, a maioria das escolas recebe os alunos surdos com muitas restrições, a despeito da Lei 9.394, de 1996, que deixa claro que a matrícula do aluno especial se dará preferencialmente na rede regular.
Outro problema antecede a escola e ocorre ainda na formação do professor. Apesar de a Libras ser considerada, a partir do Decreto 5626/2005, como componente curricular obrigatório nos cursos de licenciatura (para qualquer área, seja em ciências humanas, exatas ou biológicas), pedagogia, educação especial e fonoaudiologia, a carga horária obrigatória de 40 a 60h é tida como insuficiente. “Por isso a formação continuada dos professores é imprescindível”, ressalta Arlete.
Iniciativa local
No município paulista de São Carlos, com aproximadamente 236 mil habitantes, a prefeitura mantém, desde 2011, duas escolas públicas bilíngues até o 5º ano e inclusivas, a partir do 6º ano: o Centro Municipal de Educação Infantil Professora Ida Vinceguerra e a Escola Municipal de Educação Básica Professora Galila Galli. Juntas, elas somam 16 alunos surdos. Segundo a fonoaudióloga Micheli Toso, coordenadora do projeto Educação Bilíngue Inclusiva, foram acolhidos todos os estudantes com deficiência auditiva cujas famílias procuraram os estabelecimentos.
Ambos ficam no mesmo bairro, o Jockey Club, mas há transporte gratuito para estudantes surdos oriundos de outras regiões da cidade. No modelo adotado, os alunos surdos têm turmas exclusivas com professores bilíngues em toda a educação infantil e no primeiro ciclo da educação fundamental (até o quinto ano). A partir da sexta série, há um intérprete de Libras em sete das oito disciplinas regulamentares – a exceção é o ensino de língua portuguesa, realizado à parte com professor bilíngue.
A concentração de estudantes surdos em turmas exclusivas até o quinto ano é uma estratégia para driblar o custo de se manter um intérprete para cada aluno surdo, diz a coordenadora Micheli. Ela explica que essa é uma maneira de reforçar o ensino do português como segunda língua e compensar lacunas educacionais de alunos mais velhos que passaram os primeiros anos da vida escolar tendo de passar por cinco horas diárias de leitura labial ou tentando usufruir de alguma audição residual. A fonoaudióloga afirma que parte do problema se deve à dificuldade que muitos pais têm de aceitar a língua de sinais – optando pela oralidade (leitura labial) para a inclusão social da criança como se concorresse com o aprendizado de Libras.
“Na verdade um aprendizado potencializa o outro,” ressalta Micheli. Para ela, é preciso enxergar a educação bilíngue inclusiva do mesmo modo como se vê o ensino concomitante de inglês e português em escolas particulares bilíngues. Nestas, não se costuma temer que o idioma estrangeiro atrapalhe a comunicação em língua portuguesa. “Com Libras é basicamente a mesma coisa”, diz.
Ao mesmo tempo, as duas escolas mantém cursos de Libras abertos para a comunidade. No momento, há três opções de horários. Os cursos são abertos para familiares, amigos, professores e também para estudantes sem deficiência auditiva. O objetivo é combater o preconceito em relação à língua de sinais e estimular uma maior interação das famílias e da comunidade com suas crianças surdas.
O próximo passo para o projeto Educação Bilíngue Inclusiva é atender os estudantes surdos em período integral, com aulas de apoio no contraturno. Seria uma maneira de se compensar os anos em que estiveram no sistema de ensino sem atendimento adequado. Para que isso aconteça, falta ainda a obtenção de recursos para a ampliação dos horários do serviço que transporta os estudantes. “A nossa expectativa é que isso ocorra ainda neste semestre”, estima a coordenadora Micheli.
Sabe-se, contudo, que as escolas bilíngues de São Carlos são uma exceção. Com a progressão continuada, alunos surdos avançam pelas séries dos ensinos infantil, fundamental e médio sem fluência em língua portuguesa e mesmo em Libras, bases para o aprendizado de todos os demais conteúdos.
Isso gera distorções estarrecedoras. As notas de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2011 são emblemáticas. De acordo com dados do Inep, responsável pela prova,alunos ouvintes obtiveram média de 519 pontos, contra 266 de estudantes com deficiência auditiva e 191 dos alunos surdos.
Especialização em educação inclusiva | |
Neste ano, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo iniciou a formação continuada de 1,6 mil professores e gestores da rede, com foco na educação especial e inclusiva. São sete cursos de especialização lato sensu, elaborados em parceria com a Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Professores do Estado de São Paulo (EFAP) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp). Aos professores e gestores foram oferecidas vagas no curso de Especialização em Educação Especial pela perspectiva da educação inclusiva. Os coordenadores pedagógicos também puderam optar por seis cursos de Especialização em Educação Especial – entre eles, um focado em deficiência auditiva. O programa prevê encontros presenciais, atividades online e trabalho de conclusão de curso. De acordo com informações da assessoria de imprensa da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, estão matriculados em classes comuns da rede estadual mais de 62 mil alunos com algum tipo de deficiência. Eles dispõem de 1.770 salas de AEE (uma por escola), número 45% maior que no ano passado, quando elas existiam em apenas 1.214 unidades. |