NOTÍCIA
Na reta final para aprovar a prometida reforma educacional, que prevê agora a reestruturação do magistério, a presidente do Chile enfrenta uma dura batalha, no Congresso e na opinião pública
Publicado em 09/06/2015
A presidente Michelle Bachelet: seu governo vive um cenário de total isolamento social, sem apoios para a reforma educacional |
Na última semana de março, estreou no Chile o filme Allende em seu labirinto, do cineasta Miguel Littin. Uma história conhecida: o ex-presidente Salvador Allende (1970-1973) enfrenta as últimas horas do seu governo e de sua vida sob o bombardeio de caças da Força Aérea chilena contra o Palácio de La Moneda, durante o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973.
Comparar a queda de Allende com a situação atual da presidente Michelle Bachelet seria um claro exagero, mas o termo usado no título do filme pode ser considerado adequado para fazer uma metáfora sobre o momento da presidente, que trabalha no projeto mais importante de seu programa de governo: a reforma educacional.
O enredo da história de Bachelet é diferente, pois o labirinto de Allende não tinha saída, e o da atual presidente tem muitas. Não foi assim no começo, quando o governo tomava o rumo, que parecia natural, de abraçar as demandas do Movimento Estudantil e fazer uma reforma baseada essencialmente no anseio das ruas.
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Porém, uma vez no governo, e com o projeto já em disputa no Congresso Nacional, surgiram novos personagens coadjuvantes, grupos de empresários educacionais e associações de pais de colégios que têm concessão do Estado, que, aliados à oposição, estão dispostos a alterar as diretrizes levantadas, ou simplesmente preservar algumas condições do atual modelo educacional. Por outro lado, o projeto tampouco recebe apoio por parte do Movimento Estudantil, que o considera um mero ajuste para reforçar o modelo atual, e não uma reforma profunda como as que foram pedidas nas marchas de 2011.
Apesar de não contar com aliados sociais em nenhum lado, o governo terminou seu primeiro ano legislativo, em janeiro de 2015, com importantes vitórias parlamentares – conseguiu aprovar as leis que garantem gratuidade e proibição do lucro nas escolas de ensino médio e superior, o que Bachelet classificou como “o coração da reforma”.
Em paralelo a isso, a campanha contra a reforma vem surtindo efeito. Empresários e pais de colégios que têm concessão do Estado para operar organizaram manifestações no fim de 2014 – bem menores que as estudantis e questionadas pela forma com que convocaram aderentes -, mas com impacto na percepção pública sobre a reforma. Segundo pesquisas de opinião, o apoio às medidas da presidente para a educação vem diminuindo sensivelmente, justamente no ano em que ela terá a missão de concluir a reforma, com os projetos relacionados à reformulação da carreira docente e ao ensino superior.
A bandeira da reforma
Na campanha eleitoral de 2013, que conduziu Bachelet ao seu segundo mandato presidencial (o primeiro foi entre 2006 e 2010), a presidente levantou a bandeira da reforma educacional como o elemento mais importante de um programa de governo baseado em reformas estruturais profundas.
As grandes marchas de junho e julho de 2011, organizadas principalmente por estudantes universitários e secundaristas, elevaram a educação ao patamar de tema político prioritário no Chile, e conseguiram o apoio da opinião pública para sua causa, expondo uma das fraquezas do modelo atual: o endividamento das famílias.
Protestos para exigir a reforma educacional em maio de 2014: segundo pesquisas de opinião, o apoio às medidas da presidente para a educação vem diminuindo sensivelmente |
Segundo o sistema atual, as escolas da rede pública de ensino fundamental e médio são administradas por entes privados, com um sistema híbrido de financiamento, no qual o Estado arca com parte da educação dos estudantes, entregando dinheiro aos administradores privados das escolas públicas, enquanto a outra parte é bancada pelos pais, por meio de mensalidades.
Até então, o principal argumento a favor do modelo era que ele havia acabado com a evasão, porém o custo dessa educação plena foi passado às próprias famílias, e o resultado foi que, segundo dados do INE (Instituto Nacional de Estatísticas do Chile), uma família de classe C ou D (quase 70% da população) pode demorar até 15 anos para pagar pela educação de um único filho que estude até completar o ensino médio, ou até 27 anos se esse filho conclui o estudo superior.
No programa de governo da candidata Michelle Bachelet, as mudanças propostas no sistema de educação tinham dois objetivos políticos declarados, e um deles era o de sintonizar o discurso com as principais demandas do Movimento Estudantil.
Ainda em campanha, a presidente conseguiu o apoio da jovem que liderou as marchas de 2011, a hoje deputada comunista Camila Vallejo, e abraçou as três principais demandas levantadas pelas manifestações: a gratuidade no sistema público, a proibição para as entidades que recebem verbas educacionais do Estado de lucrar, e a desmunicipalização do ensino fundamental e médio – ou seja, que as escolas deixem de ser responsabilidade dos municípios, passando a ser geridas pelo Ministério da Educação. Também se incluiu, com o decorrer do trâmite parlamentar, um quarto objetivo, que é o de estabelecer um critério antidiscriminatório na rede pública, já que muitos dos administradores dessas escolas são ONGs católicas ou evangélicas que exigem certificado de batismo para fazer a matrícula – também há casos de escolas que exigem atestado de renda, o que o governo considera discriminação socioeconômica, além da discriminação a filhos de imigrantes, situações que a nova regra proposta pretende evitar.
Com essas quatro bandeiras, o governo lançou sua reforma no Congresso.
Resistências
Bachelet escolheu, para o cargo de ministro da Educação, um político de sua confiança: o economista Nicolás Eyzaguirre, que recebeu resistência do Movimento Estudantil à época, e permaneceu no cargo após a ampla reforma ministerial em maio último.
O desenho proposto pelo governo é bem simples. As escolas de ensino fundamental e médio que recebem verbas estatais terão de escolher entre seguir sendo administradoras dentro do sistema público, e assim ganhariam uma verba maior que atual para que ofereçam ensino gratuito aos alunos, ou se transformar em escolas particulares, pelo qual teriam que comprar os estabelecimentos e deixar de receber recursos do Estado. Porém, também nos primeiros meses, o governo conheceu os primeiros grupos de resistência dispostos a frear seu programa de reformas.
Esses três elementos (gratuidade, fim ao lucro e desmunicipalização) derrubariam o tripé do modelo educacional estabelecido quando Augusto Pinochet estava prestes a deixar o poder. A chamada LOCE (Lei Orgânica Constitucional de Ensino) foi o último decreto assinado pelo ditador, e através dela se estabeleceu o sistema educacional chileno atual.
A marcha da Confederação dos Estudantes do Chile: para o Movimento Estudantil, a reforma proposta pelo governo cede em muitos pontos à pressão dos empresários e da oposição |
Justamente esses dois grupos, os administradores privados e os pais que pagam mensalidades, foram os primeiros responsáveis pelos movimentos de contrarreforma. Em abril de 2014, enquanto os primeiros projetos da reforma educacional eram protocolados na Câmara dos Deputados, o Chile conheceu a Confepa (Confederação de Pais de Alunos de Colégios Concessionários, em sua sigla em espanhol), entidade que existia desde 2007, mas que realizava pela primeira vez uma campanha em nível nacional, criticando as diretrizes da reforma de Bachelet.
Sua presidente, a advogada Érika Muñoz, aparecia pessoalmente em spots televisivos dizendo que “com a reforma educacional, os pais perderão o direito de contribuir e participar da educação de seus filhos, e inclusive de escolher um projeto educacional que mais lhes convém”.
Meses depois, surgiu a Conacep (Confederação dos Administradores de Colégios Concessionários). Juntas, as duas entidades reforçaram sua campanha midiática e passaram a organizar manifestações em Santiago e outros grandes centros urbanos do Chile, como Concepción, Valparaíso e Antofagasta. Realizaram três marchas entre outubro e novembro de 2014, e uma delas contou com mais de 30 mil pessoas – por outro lado, algumas escolas foram acusadas anonimamente de oferecer notas extras aos alunos cujos pais participassem das marchas, situação que está sendo investigada pela Superintendência de Educação.
Em entrevista para esta reportagem, o presidente da Conacep, Hernán Herrera, disse que a preocupação das entidades que se manifestam contra a Reforma Educacional está nos objetivos dela. “Ninguém acha que o modelo educacional chileno é perfeito, evidente que precisa de ajustes, mas o que o governo propõe é destruir tudo, com fins políticos eleitorais, baseado somente na opinião do Movimento Estudantil e não na de todos os chilenos”, afirmou Herrera.
Opinião pública
Herrera reconhece algumas falências do sistema atual, como o fato de fomentar o endividamento das famílias, mas acredita que “por isso devemos aperfeiçoar o sistema, o que seria muito mais prudente e efetivo. Se não houvesse intransigência do ministro [Eyzaguirre], ele poderia ouvir propostas nossas, porque para nós, como administradores de colégios, tampouco convém que as famílias estejam endividadas e não tenham condições de pagar”.
Acusadas de serem financiadas pelos partidos de direita, a Confepa e a Conacep garantem que seu objetivo não é desgastar o governo, e sim zelar pela liberdade de escolha dos pais. O fato é que suas campanhas vêm obtendo resultados na opinião pública. Em pesquisa divulgada em janeiro deste ano pelo instituto CEP (o mais conceituado do país), 51% dos entrevistados disseram que as reformas estão sendo realizadas de forma equivocada pelo governo. Esse percentual, em comparação com outras perguntas realizadas pela pesquisa, aponta que algumas pessoas defendem os objetivos da reforma, mas não a forma como está sendo realizada. Ainda assim, também houve diminuição no apoio às medidas em si. Por exemplo, a gratuidade na rede pública era apoiada por 62% da população. Na época entre as primeiras marchas do Movimento Estudantil e os primeiros meses do governo de Bachelet, esse apoio superava os 75%, chegando a 86% em meados de 2013.
Resistência Estudantil
Por sua vez, o Movimento Estudantil tampouco abraça os projetos governamentais para reformar o modelo educacional, configurando o cenário de total isolamento social do governo de Bachelet. Embora alguns dos líderes estudantis surgidos nas marchas de 2011 sejam hoje parlamentares que formam parte da base governista, como a deputada comunista Camila Vallejo e o independente Giorgio Jackson, a visão dos atuais líderes estudantis com relação à reforma é bastante mais crítica.
Segundo Valentina Saavedra, atual presidente da Confech (Confederação dos Estudantes do Chile), a reforma proposta pelo governo “pode ter muitas boas intenções, mas cede em muitos pontos à pressão dos empresários e da oposição, e fica impossível para o Movimento Estudantil sair às ruas para defendê-la, se o projeto permite aos empresários comprar uma escola que hoje é pública e transformá-la em particular”.
O ministro Nicolás Eyzaguirre rebateu essa opinião dizendo que “o jogo democrático consiste em ouvir os dois lados e tomar propostas de ambos, e assim estamos conseguindo realizar a melhor reforma possível. Claro que, no futuro, ela poderá ser aperfeiçoada, mas o que estamos aprovando agora já torna o sistema muito mais justo e equitativo”.
Mesmo diante de um quadro de falta de apoio, o governo de Bachelet conseguiu importantes vitórias tanto no Legislativo quanto no Judiciário. Em janeiro deste ano, os projetos relacionados à gratuidade no ensino fundamental e médio e fim ao lucro na educação foram aprovados em ambas as instâncias do Congresso, assim como o que estabelece um novo critério antidiscriminatório para a seleção de alunos nas mesmas etapas de ensino. No dia seguinte, a oposição entrou com uma liminar no Tribunal Constitucional, alegando inconstitucionalidade de algumas medidas, especialmente as que proibiam o lucro e impediam as escolas de selecionar alunos de acordo com um perfil religioso determinado pelos administradores. As medidas foram julgadas improcedentes, em decisão divulgada no início de abril.
Este ano, os últimos dois capítulos da reforma educacional serão travados no Congresso, e dizem respeito à reestruturação do magistério, que se baseará em estabelecer um piso salarial maior e uma fórmula de avaliação anual que não contemple perda de direitos trabalhistas, e ao ensino superior – as universidades públicas chilenas são administradas por entidades organizadas por docentes, e não recebem nenhum tipo de ajuda estatal, sendo financiadas exclusivamente através de mensalidades, que costumam ser mais caras que as das universidades particulares.
Saídas
Diante desses desafios, Bachelet conseguiu que sua principal aliada na Câmara dos Deputados, a ex-líder universitária Camila Vallejo, fosse escolhida presidente da Comissão de Educação, justamente no ano decisivo para a educação superior. Porém, Camila também viverá seu próprio labirinto, ao enfrentar o dilema de defender um projeto patrocinado pela coalizão de governo da qual ela faz parte, mas que é rejeitado pelos seus antigos companheiros de Movimento Estudantil.
Contudo, assim como o labirinto sem saída de Salvador Allende marcou eternamente sua imagem e a de seu governo, a variante entre o sucesso ou o fracasso da reforma educacional também deverá marcar o governo de Michelle Bachelet segundo os olhos da História. O labirinto da atual presidente tem várias saídas, e diferentemente do que aconteceu em 1973, ela não precisa temer uma possível perda do mandato, muito menos uma ameaça de magnicídio. Seu maior problema é o risco de se transformar em um símbolo de frustração. Mas ela também pode ter sucesso, e nesse caso poderia se elevar ao patamar dos governantes mais importantes da história do país.
Plano Nacional Docente | ||
A discussão sobre o piso salarial do magistério é inevitavelmente o carro-chefe do novo Plano Nacional Docente, que aguarda aprovação dentro da reforma educacional chilena. O governo apresentou uma proposta para elevar a 750 mil pesos (cerca de R$ 4 mil) o salário mínimo dos professores dos ensinos fundamental e médio da rede pública. O piso hoje é estabelecido em 620 mil pesos, equivalentes a R$ 3,3 mil.
A Associação dos Professores defende um piso de um milhão de pesos para a categoria, e diz que continuará pressionando o governo para aumentar a proposta. Contudo, a organização do magistério se diz satisfeita com o que classificou como “um sinal” do Executivo, que decretou a formalização obrigatória dos professores que trabalham nas escolas concessionárias, que serão obrigadas, dentro do prazo até o final deste ano, a regularizar a situação de pouco mais de 32 mil professores que trabalham como terceirizados atualmente nos estabelecimentos públicos. Para o presidente da Associação dos Professores, Jaime Gajardo, “chegamos a um avanço importante em termos de direitos trabalhistas, mas seria melhor ainda se o governo se comprometesse a incluir uma cláusula na reforma que proibisse a terceirização de docentes, para consolidar a medida e evitar que as escolas busquem outro atalho jurídico para revertê-la”. Contudo, ainda não há clareza sobre como será a avaliação nacional docente, que será anual e também causa preocupação entre os professores, já que a Conacep (Confederação de Administradores de Colégios Concessionários) defende maior liberdade para poder demitir e contratar professores, razão pela qual o magistério teme que a avaliação sirva como mecanismo para viabilizar isso. O Ministério da Educação afirmou que ainda serão elaborados os detalhes desse e de outros pontos do Plano Nacional Docente, por meio de disussões tanto com os professores quanto com os administradores de escolas.
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